comprei um bilhete pra Portugal
vim atrás de uma mala perdida
uma geografia que me leve de volta ao lugar onde
nunca estive
ao sítio onde metade minha
foi iniciada
continuada
.
eu vim continuar
desde que comprei um bilhete pra Portugal
e desci de um avião pousado na terra
na terra de onde saímos todos pelo mar
eu e meus passados
há uns oito anos iniciei o processo que sabia que seria demorado e difícil, em sentidos muitos particulares. foi árduo encontrar os papeis entre cartórios portugueses e angolanos, onde se traçaram os fios da minha família. talvez por isso eu sempre tenha dito, quando sair minha nacionalidade portuguesa eu vou dar uma festa!
disse mas não dei. quando saiu, mal contei pra família e uma pessoa ou outra mais próxima. quase como uma novidade trivial, tímida, comemoração de emojis privados de um dia só.
foram seis anos de espera. quando finalmente chegou a aprovação, em 2021, eu não me encontrava exatamente em estado celebrativo. viva ainda em completo isolamento, lidando com uma ansiedade sem precedentes (pra mim) e reagindo alergicamente a pessoas.
mas, sim, poderia ter festejado virtualmente, por que não? nas redes sociais, um textão aqui, um registrinho ali e tudo bem. bom, acontece que eu sou a rainha da autocensura e não me pareceu merecedor de grandes alegorias algo que muita gente usa como sinônimo de status. achar grandes coisas um documento europeu, francamente, nada pode ser mais cafona.
sem contar que cada centímetro do meu espírito ama ser feito de Brasil e de América Latina. nada me compõe tanto.
bom, acontece que aquele dia de chegar a nacionalidade foi, sim, um dia feliz pra mim. e muito. assim que a mensagem chegou, abracei o Gustavo e chorei no nosso cantinho. ele me entendia. tinha sido um processo lento lento, que custou não só tempo, mas dinheiro, e muitas mexidas familiares emocionais a que eu nem sempre estava disposta a enfrentar.
além disso, a cada ano passado sem uma conclusão, mais envelheciam as pessoas mais importantes do mundo, quem eu queria homenagear, quem me fez querer ir atrás dessa ideia: meu vô e minha vó.
Manuel e Lídia, o casal que atravessou o Atlântico na década de 60 com umas maletas de pouca roupa, dois filhos miúdos e quase dinheiro nenhum. o pouco ainda foi levado em um golpe aplicado, mal e mal haviam chegado.
foi preciso muita força de vontade pra ficar, fincar raízes no Brasil, raízes que o vô Manuel hoje diz se orgulhar de ter, enquanto levanta o copo de requeijão e arranca um gole de vinho artesanal feito por ele.
o pequeno Manuel, nascido no interior de Pombal, onde plantava e colhia e cuidava dos bichos com a família, e ia a pé vender a couve no centro da cidade, esse Manuel prestes a completar 90 anos se sente brasileiro. apesar do sotaque lusitano persistente, do jeito sóbrio que hoje reconheço em muita gente aqui em Cacém, cidadezinha onde tenho ficado, meu vô também é brasileiro.
não é por causa dos mais de 50 anos vivendo no Brasil. se perguntar pra ele o que são raízes, muito provavelmente ele vai apontar pra mim, pras minhas irmãs e primas. se ele não fosse de raríssimas palavras, talvez dissesse que Brasil foi onde ele plantou a gente, e é isso o que uma pátria significa.
quando eu era pequena, o vô Manuel tinha um bar chamado Benfica. foi como criou os filhos e cuidou das netas, atendendo numa portinha da Antônio dos Anjos, em Pelotas. a vó Lídia fazia salgados, bolos, fritava croquete [o melhor da cidade] e a grande estrela da casa, o bolinho de bacalhau. em dias de festas, podia faltar tudo menos o bacalhau, era de praxe. no bar e na mesa de casa, com toda a criançada reunida.
a cultura portuguesa estava em cada cantinho da casa da minha infância, a casa dos meus avós.
as formas clássicas do azulejo da cozinha, as toalhas de mesa sempre ilustradas com galos e outros motivos lusitanos, a televisão sempre ligada na missa ou na RTP, tradicional canal português disponível no Brasil, afinal era preciso saber as notícias do lado de cá do oceano. as gírias icônicas da minha vó, que sempre nos faziam rir, principalmente se pronunciadas em frases gigantes na velocidade da luz, porque ela gosta de usar as palavras que faltam ao meu vô e algumas mais.
mais do que uma convivência com eles, minha vida sempre foi um encontro com tudo o que fez eles serem quem são. sinto que Portugal esteve em mim desde sempre. fui feita de Manuel e Lídia, também. eu sou a raiz que eles deixaram crescer em terra brasileira, mas antes disso eles foram minha semente. e isso também é uma pátria.
ver a carinha deles quando mostrei pela primeira vez meus novos documentos, os documentos que me fazem compartilhar com eles uma terrinha deixada pra trás, foi de uma emoção que eu não poderia descrever.
então
comprei um bilhete pra Portugal.
com o passaporte português e a identidade de cidadã em mãos, cheguei carregando essa minha geografia inteira. vim conhecer de onde vieram algumas partes minhas e, quem sabe, outras que eu nem conheço.
daqui, te desejo uma vida de celebrações e muita descobertas…
p.s.
📖 Livro do Desassossego, Fernando Pessoa. talvez eu já tenho indicado aqui esse que é um dos meus favoritos. se sim, desculpa ser repetitiva. mas a ocasião tem me feito pensar muito nele e ter vontade de reler e retomar as páginas que a bem da verdade nunca venci de todo [gosto dele assim, como um oráculo em que a gente vai e vem, lendo em ondas].
🎞 Tár - simplesmente estou sem entender por que o Oscar desse ano não foi pra Cate Blanchett por essa magnífica interpretação, sério, não poderia ser de mais ninguém. o filme demora a engrenar, mas depois ele te agarra pelo pulmão, estômago, rins
🎞 Ilha das Flores - um clássico do documentário brasileiro. lançado em 1989, é ainda brilhante, ainda atual (infelizmente). assiste! 13 minutos :)
verso
fui visitar a Casa Fernando Pessoa, em Lisboa, e, imersa que estou, não poderia trazer outro poeta pra cá. ouvi esse poema declamado na galeria em homenagem aos heterônimos. aí está Alberto Caeiro, meu favorito 💜
O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia
O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia
Mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia
Porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia,
.
O Tejo tem grandes navios
E navega nele ainda,
Para aqueles que vêem em tudo o que lá não está,
A memória das naus.
.
O Tejo desce de Espanha
E o Tejo entra no mar em Portugal.
Toda a gente sabe isso.
Mas poucos sabem qual é o rio da minha aldeia
E para onde ele vai
E donde ele vem.
E por isso, porque pertence a menos gente,
É mais livre e maior o rio da minha aldeia.
.
Pelo Tejo vai-se para o Mundo.
Para além do Tejo há a América
E a fortuna daqueles que a encontram.
Ninguém nunca pensou no que há para além
Do rio da minha aldeia.
.
O rio da minha aldeia não faz pensar em nada
Quem está ao pé dele está só ao pé dele.”
Alberto Caeiro
'se ele não fosse de raríssimas palavras, talvez dissesse que Brasil foi onde ele plantou a gente"
que texto mais lindo, pra variar ❤️
Uma delícia de leitura para iniciar uma sexta-feira repleta de desafios! Hei também de ir além, de atravessar meus mares... :)