olhava de cima, tudo em escala de micróbio, pedaços sujos de terra concreto fumaça formavam ilhas enormes numa água que não parava de subir
uma água que se aumentava do antigo gelo e passava a engolir as ilhas para si
Atlântidas sumiam para viver nos livros de histórias, acontecidas ou não, sumiam para sobreviver de palavra em palavra
sabiam que aqui existia um país? sim, um país com gente e tudo!
contavam bípedes de pelos embranquecidos, sentados com semelhantes à volta de fogueiras, vagalumes da comunhão espalhados pelas grandes ilhas-continente
vejam bem, aqui existiu uma árvore, casa de pardais que na altura também existiam…
a luz do fogo permitia que enxergassem o conto. apontar e tocar com a ponta dos dedos, atravessar o véu do Tempo. a luz deixava que vissem as mutações, o final de um tronco morto, a última semente de uma terra que já não vingava, o lugar onde o urso branco perdeu todas as certezas
o silêncio se instaurava após cada rodada simultânea de visões
crepitar
. . . . . . . . . . . . crepitar
crepitar
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . fogo
crepitar
.
.
.
.
.
agora os convido a olhar para aquele outro lado, se adiantavam os anciões a interromper o silêncio do horror. era possível ouvir até do espaço o coro dos crânios em movimento
o fogo, também muito usado na função de ver o que virá, servia no chão a nova cartografia, fenômeno de sombras possíveis projetado através das chamas
atenção, o nome disso é futuro
mas podem chamar de imaginação.
o futuro ainda não existe
o futuro ainda não existe.
o futuro ainda não existe.
o futuro ainda não existe.
talvez a gente precisasse dizer isso em voz alta todas as manhãs. três vezes. quatro, se tu funcionas em número par. talvez a gente devesse se deter mais tempo pronunciando cada uma das letras
f u t u r o
dessa frase óbvia
agarrar o que não é dito
cultuar o oculto
o que há numa não existência:
possibilidade
.
o futuro é o que um dia vão tirar da sacolinha rasgada que carregamos nas mãos até o final da linha, os materiais que acumulamos, moldamos, transformamos, conservamos
é o que vai surgir das nossas criações
artesanais ou industriais
literárias também, e talvez mais do que tudo.
.
às vezes é difícil imaginar futuro. eu tenho andado assim, tu também? guerra, massacre, fim do mundo batendo às portas, capitalismo tomando frente da extinção, insistindo em queimar gente antes que o sol faça isso.
mas o sol também:
o país de Tuvalu morreu na água
seu ministro tinha avisado quando se pronunciou com o mar nos joelhos, tentando convencer os homens de negócios a pararem o aquecimento.
o mar, que na época não chegava ao microfone, subiu mais e tomou a proporção do silêncio
do desaparecimento.
.
tem dias que dóem tanto que o nosso próprio mundo já se termina e tudo que queremos é um colo onde não ser nada, não querer ser nada (e diferente do poema, sem todos os sonhos do mundo).
mas dia desses encontrei uma foto que num instante de falta de ar me ensinou sobre ser alguma coisa de Talvez.
era essa:
duas crianças e um adulto, provavelmente o pai, brincando numa banheira em meio aos escombros. sendo o minimamente possível Feliz.
foi compartilhada como sendo Gaza, mas pode ser que seja da guerra na Síria. independente da guerra, a imagem, tão dura quanto bonita, se projetou em mim com a força de um metal pesado. a foto me aconteceu como uma resposta.
uma remarginação da vida.
remarginar é o caminho contrário de uma outra palavra que eu amo [talvez eu já tenha falado nela uma ou três vezes por aqui, pois sou repetitiva]:
a desmarginação.
pra mim, nenhum outro termo explica tão bem a sensação de quando tudo desmorona e perdemos as certezas das coisas que nos mantinham no lugar. perdemos as margens. a palavra, criada por Elena Ferrante em A Amiga Genial, explica o mundo de Lila, uma das personagens mais cativantes e complexas da literatura recente. na primeira vez que li a desmarginação, tive que parar pra respirar. às vezes a leitura também é um afogamento… é preciso subir um pouco à superfície, comer algum ar…
“Debaixo d'água tudo era mais bonito
Mais azul, mais colorido
Só faltava respirar
Mas tinha que respirar
Debaixo d'água se formando como um feto
Sereno, confortável, amado, completo
Sem chão, sem teto, sem contato com o ar
Mas tinha que respirar”
eu respirei com a foto do riso. ela me remarginou. mostrou que mesmo diante da morte, do horror, da desesperança, gente insiste em viver.
insistir na dança do corpo
na música da palavra
na festa teimosa que é estar presente
fazer uma sacolinha de achados e perdidos, conservar o que for possível, juntar materiais, brincar de faz de conta
inventar!
brincar para acreditar que é possível o amanhã.
.
[e isso não é uma romantização da guerra… a guerra precisa parar. a guerra precisa parar. a guerra precisa parar. a gente precisa brincar sem ter que morrer]
envio dos deuses
na mesma semana desesperançada eu tinha um trabalho pra apresentar sobre o livro The Futurist Moment, de Marjorie Perloff. a autora remonta toda a trajetória do que ela chama de momento futurista das artes. uma onda que começa no início do século 20 [tempo de guerra, também] e vem se embolando no mar até hoje.
o futurismo está em nossas mãos
esse
despertar
esse
descobrir que
se o futuro ainda não existe
é possível criá-lo,
que seja com palavras melhores
há alguns anos eu vi o TED Talks da escritora de ficção científica Charlie Jane Anders, em que ela, uma otimista incurável [que inveja], provoca a imaginarmos um lugar interessante no futuro em vez das batidas terras arrasadas da sci-fi.
temos as ciências, teorias e previsões. mas a verdade é que ninguém sabe como será o amanhã, responda quem puder… e se alguém pode, são os artistas. tudo que existe hoje um dia foi imaginado por alguém, do teclado que digito esse texto à cadeira de madeira onde me sento com uma terrível dor na lombar [tá, isso não interessa aqui rs…]
tudo um dia foi imaginado. tudo um dia foi criação. então tudo amanhã está em aberto hoje.
“Você não prevê o futuro. Você imagina o futuro”
“O futuro será muito mais estranho do que podemos imaginar. Eu sei que haverá coisas muito muito assustadoras, mas também haverá maravilhas e graças. O primeiro passo para encontrar o caminho é deixar sua imaginação correr solta.”Charlie Jane Anders
a arte precisa traduzir o horror, precisa sim vingar a morte e o degelo, sempre. mas ao mesmo tempo precisa apontar direções, sombras em uma fogueira, imaginar algo além, uma saída. um lugar diferente, com todos os efeitos colaterais desse mundo que conhecemos, mas também melhor.
é um exercício que pretendo fazer, não sei se vou conseguir…
se Manoelito diz, é uma ordem
vamos transver o mundo.
até a carta futura.
um beijo,
p.s.
coisas bonitas:
📷 fotografia: Love from the first sight - Louis Armstrong tocando trompete para a esposa Lucille no Egito, em 1961. uma joia maravilhosa.
🎵 música: ouvindo em looping A pequena suburbana, de Tom Zé e Caetano - álbum Vira Lata Via Láctea, indicado por um amigo. não conhecia e amei.
🎵álbum: Collapsed In Sunbeams, de Arlo Parks - descobri a Arlo no auge da pandemia por um cover lindo de Creep [música da vida 💜]. essa artista me resgatou em muitos momentos… depois de vários singles, em 2021 ela lançou esse que é o primeiro álbum da carreira. minha faixa favorita é Black Dog.
🎬 filme: A short story, uma história realmente curta, de 15 minutos, um sonho-viagem surrealista guiado por um gato de roupa em busca de algo precioso. coisas estranhas que eu gosto… é do diretor chinês Bi Gan e está no Mubi.
verso
tomando coragem, um poema meu :)
.
futurismo
desde o começo do fim dos tempos
os cientistas, físicos, astronautas
sociólogos do caos gastam suas lupas seus telescópios
tentando descobrir o que é que existe amanhã
se lá vai ter gente, essa carne humana pesada
ou é só espaço vazio puro
como Ana disse a Stela
.
dia desses eu li uma notícia:
pesquisadores encontraram uma partícula de futuro
numa folha de papel surrado
pedaço de coisa com destino de esquecimento
amassada no cesto de recicláveis
foi um estudante entediado quem abriu o lixo pra gastar Tempo
com curiosidade distraída
foi abrindo até o miolo daquelas linhas sem função
usando as ferramentas mais modernas aumentaram o troço
era um poema
um rascunho de insônia
rasgado, riscado, fugido
remexido mil vezes
uma investigação como nenhuma outra se viu na história da ciência
era um estado avançado de busca
de qualquer coisa além da matéria
do que não existe
era desenho de um futuro do passado que ainda não aconteceu
.
diante de tão inédita invenção,
o poeta foi condecorado com um Nobel da existência
título: agente da anunciação
inventor do invisível
possivelmente impossível
criador do inútil infundado futuro
promissor
lugar onde não, não haverá carne humana pesada
nem espaço tempo, nem poetas, nem invenções
no futuro, está escrito no poema sagrado, vai ter só o que sobra das guerras depois que a bomba chora:
o fim
e no fim, assim como no começo, restará somente
o verbo
* [gravei o poema num vídeo-declamação ~de qualidade duvidosa~ e postei aqui]
Entre tantas edições suas que amo, talvez essa tenha alcançado o topo. A costura tá preciosa demais. E, no meio do texto, essa imagem das crianças na banheira faz a gente questionar nossa própria existência enquanto eternos reclamões.
Obrigado por sua arte, querida! ❤️
adorei confundir fato e ficção no poema ♥️