As Melhores Partes
Que bobagem! - Natalia Parternak e Carlos Orsi
O livro certo no foco e tom errados
Cunhei as expressões “marketing do inferno” e “marketing do Éden” para traduzir os dois tipos de estratégias de comunicação que viralizam nas redes sociais no meio das PICS (Práticas Integrativas e Complementares de Saúde). No marketing do inferno, nenhuma delas funciona, quando não são absolutamente perigosas. No do Éden, todas são necessárias e funcionam onde a biomedicina falha. Cientistas que aplicam a MBE (Medicina Baseada em Evidências) tendem a adotar o tom do primeiro, ao passo que profissionais da saúde que vivem de extrapolação científica (ainda que alguns sejam bem intencionados) adotam o segundo.
Um dos méritos do IQC - Instituto Questão de Ciências, que inaugurava suas atividades com anúncio de meia página no principais jornais impressos do Brasil na mesma manhã de um novembro de 2018 em que eu participava como presidente da Abraroma em uma mesa-redonda em um congresso de aromaterapia, foi questionar se as PICS devem ou não devem ser ofertadas no SUS. Lembro que em março do mesmo ano, o então ministro da saúde, Ricardo Barros, acrescentava mais 10 terapias à Política Nacional de PIC, mais interessado em garantir sua imunidade parlamentar no próximo pleito que em cuidar da saúde das pessoas de fato, na minha opinião.
Que bobagem! (Contexto, 2023), escrito pela presidente do IQC, Natália Parternak, e o jornalista Carlos Orsi, poderia ter enveredado pela discussão em que eles ganhariam facilmente o debate - se é legítimo incluir nas despesas públicas de saúde as PICS -, mas preferiram enveredar o livro para o lado em que jamais ganharão, qual seja, o de questionar a validade das PICS.
Acho lamentável que o livro tenha adotado uma estratégia errada de convencimento, falando para convertidos, em vez de introduzir o ponto que acho mais relevante para nossa sociedade: qual conceito de saúde e de cuidado queremos no SUS. Não adianta questionar a validade científica das PICS quando todo mundo em volta busca é um cuidado mais humano, mais holístico que, embora possa ser ofertado pela biomedicina, não vem sendo e parece que não virá a ser, mas costuma sê-lo nas PICS. A realidade - ignorada pelos autores - é que as pessoas, mesmo quando sabem que as evidências em PICS não têm a mesma robustez das evidências em medicina e farmacoterapia convencionais, ainda querem ser cuidadas com essas terapias. E ignoram que, entre os que conhecem MBE, também é questionada a robustez das evidências da biomedicina, sendo que alguns dos questionamentos que são feitos às PICS poderiam facilmente ser feitos à medicina convencional (aliás, essa é missão da organização Choosing Wisely, que revisa evidências em várias áreas da biomedicina, mostrando como muitos protocolos tendem a ser superestimados em seus desfechos ou, até mesmo, danosos).
O livro Que bobagem! é um livro necessário, mas é um livro tão beligerante e tão estridente que as pessoas se puseram na defensiva - foi uma reação proporcional à ação, eu diria. Se lemos, por exemplo, o título Filosofia da Ciência dos professores Terra da USP (Contexto, 2023), eles também se dedicam a explicar os mecanismos por trás da aceitação das pseudociências mas de forma muito mais elegante, educada e empática. Que bobagem! é tudo, menos empático - e essa é uma de suas falhas. Pouco importa a (excelente) pesquisa dos autores para embasar seus argumentos: a completa ausência de cortesia e o desvio da rota para longe do debate mais produtivo - qual seja, que tipo de prática de saúde é legítimo o SUS oferecer, deixando de assumir que apenas a prática baseada nas melhores evidências é legítima -, passa longe de uma compreensão antropológica e sociológica do mundo atual.
Muitas vezes, queremos que as pessoas sejam racionais, mas elas não são, simples assim. Queremos que a ciência dê conta de nosso adoecimento, mas sozinha ela não dá. Sobretudo, o que é ter saúde, hoje, é um conceito tão aberto (com a OMS contribuindo fortemente para o alargamento dele), que apenas míopes podem deixar de perceber que as PICS no SUS não são um ato de picaretagem de pseudocientistas, mas um movimento em direção à hiperbolização da noção de saúde, que cada vez mais se torna sinônimo de “não sofrer”, empurrada pelo avanço do capitalismo e, paradoxalmente, pelo da própria ciência.
Em meu blog As Melhores Partes dos Livros que Li trouxe mais citações deste livro e mais comentários. Eu torço para que os autores possam publicar uma nova obra mas desta vez discutindo política pública de saúde de um ponto de vista em que a premissa - que absolutamente não é compartilhada por todos - de que apenas o científico merece estar no SUS não esteja por trás da elaboração dos argumentos.
E apenas caso tenha curiosidade, eu não tenho mais uma posição definida sobre as PICS no SUS. Até bem pouco tempo atrás, eu era contra, mesmo ocupando a presidência da Abraroma (o que me custou muito em termos pessoais, porque é difícil atuar em uma corporação profissional em que não se defenda a ampliação das oportunidade de trabalho para sua classe). Contudo, tenho visto que a PNPIC é tão marginal ainda entre os problemas do SUS, é tão pouco praticada e, quando é, praticamente é feita com recursos dos próprios profissionais - e costuma ser tão bem aceita pelos usuários do sistema -, que hoje prefiro manter minha guarda baixa porque eu posso não estar vendo o pano de fundo todo. Um amplo debate seria mais proveitoso que posições rígidas.
Acesse a resenha no link abaixo:
https://casamay.com.br/asmelhorespartes/que-bobagem-natalia-parternak-e-carlos-orsi/
E, se gostou da resenha, compartilhe-a.