IA generativa, direitos autorais e a nova fronteira da criatividade
O caso da Creativity Machine e o conceito de autoria
A IA generativa desorganizou o modo como costumávamos pensar a criação humana e os direitos relacionados a ela. Os diversos sistemas de IA de que dispomos hoje nos entregam textos, imagens e códigos de programação que até pouco tempo atrás considerávamos que só poderiam ter sido feitos por nós.
Isso pode ser muito prático e útil e a internet já está abarrotada com esses outputs produzidos por IA a partir dos comandos (prompts) de seres humanos. Mas essa novidade está nos obrigando a repensar conceitos que desde muito tempo eram considerados consolidados. No direito, temos um exemplo disso com a questão dos direitos autorais.
Direitos autorais, IA generativa e scraping
Em novembro do ano passado, nos Estados Unidos, surgiu a primeira ação coletiva (class action) argumentando que o treinamento de sistemas de IA generativa, bem como seu output, incorrem num sistemático desrespeito a normas de direitos autorais. A ação é contra a Microsoft, a GitHub (subsidiária da Microsoft) e a OpenAI, que recebeu investimentos da Microsoft para desenvolver o ChatGPT.
A tese defendida é de que ao treinarem seus sistemas de IA com código de programação aberto (open source) extraído da web por scraping, as empresas violam a legislação de direitos autorais — que exige que haja a atribuição da autoria ao programador que o criou. Isso não é feito e, pelo que conhecemos do funcionamento desses sistemas, talvez nem possa ser.
Independentemente de ser ou não possível dizer que parcela de um código gerado por IA vem do código x ou y desenvolvido por um programador humano, a motivação para se ingressar com a ação parece estar no prejuízo que a comunidade que trabalha com o desenvolvimento de código aberto pode sofrer com sistemas de IA generativa. Isso porque quando a autoria é atribuída ao desenvolvedor ele se beneficia com isso, podendo, por exemplo, vender suporte ou outros serviços associados à utilização daquele código.
De lá para cá, o debate sobre violações de sistemas de IA generativa a direitos autorais e à privacidade cresceu.
Uma class action movida por um escritório de advocacia da Califórnia alega que o ChatGPT violou os direitos de inúmeras pessoas ao usar dados raspados da internet em seu treinamento.
Recente notícia mostra que o The New York Times atualizou seus termos de uso para proibir as empresas de IA de copiar artigos e imagens do jornal para treinar seus modelos. Além disso, parece que o Times está avaliando processar a OpenAI: seus advogados estavam avaliando se uma ação judicial seria necessária para proteger os direitos do jornal sobre sua propriedade intelectual.
A IA, os direitos autorais e a criação de uma obra de arte
Em 18 de agosto deste ano, o Tribunal do Distrito de Columbia, nos Estados Unidos negou o registro dos direitos autorais desta imagem, gerada por um sistema de IA chamado de Creativity Machine.
No pedido de registro, a imagem, intitulada A Recent Entrance to Paradise, teve sua autoria atribuída a "um algoritmo executado pela máquina, capaz de criar a obra de forma autônoma".
Stephen Thaler, o desenvolvedor da Creative Machine, foi quem tentou registrar a imagem, reivindicando para ele os direitos autorais da obra criada pela máquina de sua propriedade.
O órgão responsável negou o registro por entender que se tratava de uma obra criada sem qualquer envolvimento humano. O Tribunal entendeu que essa rejeição foi correta.
O fundamento da decisão está no argumento de que não há direitos de autor para uma obra que não tenha autoria humana. Para o Tribunal Distrital, embora esses direitos sejam concebidos para se adaptarem aos novos tempos, tem havido um entendimento consistente de que a criatividade humana está no cerne da capacidade de possuir esse direito. Sem criatividade humana, sem direitos autorais, portanto.
A alegação de Thaler no processo administrativo de que a obra foi criada de forma autônoma pelo algoritmo inviabilizou outro entendimento por parte do judiciário que, no direito consuetudinário, está vinculado às mesmas informações da primeira decisão.
Thaler fez pedidos de reconsideração para o órgão de registro dizendo que "forneceu instruções e direcionou sua IA para criar a obra” e que "desempenhou um papel de controle na geração do trabalho", mas esses pedidos foram rejeitados.
Questões processuais à parte, o ponto mais interessante desta decisão para mim é a reflexão abaixo.
"Sem dúvida, estamos a aproximar-nos de novas fronteiras nos direitos de autor à medida que os artistas colocam a IA na sua caixa de ferramentas para ser utilizada na geração de novos trabalhos visuais e outros trabalhos artísticos. A crescente atenuação da criatividade humana a partir da geração real do trabalho final suscitará questões desafiadoras."
São questões como:
quanta contribuição humana é necessária para qualificar o usuário de um sistema de IA como autor de um trabalho gerado?
qual o grau de proteção recebido pela imagem?
como avaliar a originalidade de obras geradas por IA cujo treinamento pode ter sido feito com base em obras pré-existentes desconhecidas?
como os direitos autorais podem ser melhor utilizados para incentivar trabalhos criativos envolvendo IA?
Ao dizer que a obra foi feita de forma autônoma por IA, Thaler selou o destino de sua reivindicação, pois a lei dos EUA exige criatividade humana. Dizer que não há nenhuma participação humana é, portanto, ficar fora da previsão legal.
No Brasil, a exigência legal é a mesma. Mas a Lei 9.610 usa um termo interessante.
Art. 7º São obras intelectuais protegidas as criações do espírito, expressas por qualquer meio ou fixadas em qualquer suporte, tangível ou intangível, conhecido ou que se invente no futuro(...)
Algumas considerações sobre o caso da Creativity Machine
Com a chegada de sistemas de IA generativa, temos que compreender — e eventualmente repensar — como se dá a criação humana, buscar entender como o processo de criação da máquina acontece e em que medida ele difere do processo humano. O Tribunal dos EUA tocou nessa questão.
Pela legislação que existe hoje, a participação humana é o ponto que precisa ser avaliado. O Tribunal fala do prompt como um tipo de participação, de direcionamento. Mas que tipo de prompt seria um direcionamento suficiente?
A máquina é treinada com milhões de imagens que não sabemos exatamente quais são, pode se inspirar em estilos, inclusive quando nós pedimos isso a ela. Mas isso não é uma cópia. Nós seres humanos também nos inspiramos nos outros.
Mas vamos partir do princípio de que existem direitos autorais sobre imagens criadas pelos sistemas de IA que utilizamos. Nesse caso, quem seria o titular desses direitos?
É um tema polêmico e que está sendo pensado neste exato momento pelos Tribunais. Acho que vamos ter que esperar as coisas decantarem para termos uma noção melhor.
Mas nas minhas pesquisas descobri um relatório do Serviço de Pesquisa do Congresso dos EUA que me ajudou bastante a pensar o problema. Como ponto de partida, podemos nos apoiar numa analogia com as fotos que tiramos — ou tirávamos — com as câmeras fotográficas.
“O criador da IA pode ser comparado ao fabricante da câmera, enquanto o usuário da IA que solicita a criação de um trabalho específico pode ser comparado ao fotógrafo que usa essa câmera para capturar uma imagem específica. Nesta visão, o usuário da IA seria considerado o autor e, portanto, o proprietário inicial dos direitos autorais”.
Mas estamos diante de uma situação mais complexa do que temos quando usamos máquinas fotográficas. Assim,
“as escolhas criativas envolvidas na codificação e treino da IA, por outro lado, podem dar ao criador de uma IA uma reivindicação mais forte de alguma forma de autoria do que o fabricante de uma câmera”.
A título de curiosidade, os termos de uso do Dall-E 2 da OpenAI atribuem ao usuário quaisquer direitos autorais sobre as imagens geradas:
“a OpenAI cede a você todos os seus direitos, títulos e interesses no Output.”
Quando pensamos na criação de uma obra, a IA generativa embaralha as coisas porque nela o usuário, o programador e o próprio programa desempenham um papel. Assim, a questão de quem seria o autor não parece fácil de se resolver. Dentro desse modelo de criação, penso que um aspecto que surge como importante a ser avaliado é a medida de interferência humana necessária para se configurar um direito.
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