meu amorzinho,
acho que o desejo mais presente em meu coração nos últimos tempos é o de encarar com graça as coisas que ainda não estão resolvidas, e as que não podem ser resolvidas — não por mim, nem por nenhum de nós, nem pelo tempo —, essas talvez até mais. dito de outro modo, paciência.
demorei muito para te escrever e o mundo, você sabe, agora acho que nunca mais acertarei o timing para te dizer o que quero.
em que tenho pensado? bom, num dia desses tomei suco de laranja, aí lembrei que cresci ao lado de laranjeiras e fiquei feliz de pensar que laranjeiras ainda existem apesar de tudo, que logo estarei perto delas novamente, e é nisso em que tenho me apegado desde então.
enquanto a guerra e a água nos arrasavam com toda a indiferença, estive ocupada com o meu cotidiano, egoísta, tentando imaginar uma cidade com retas e cantos engenhosos, pavimentados e sinalizados onde também talvez lá viva a crença de que podemos montar e desmontar o mundo conforme a nossa vontade.
repito essa sensação conhecida de compartimentar as experiências e experimentar o trivial e o denso da vida em espaços muito distintos, o que deve ser outro modo tosco de tentar ignorar os riscos.
a cidade que imagino não existe, é plana como uma tela, inodora, um esboço; assim como quando ouço sua voz ela está sempre diferente do que me lembrava, e as palavras que você escolhe eu não saberia antecipar. fico intrigada com a baixa resolução que tem a minha mente, no quanto ela deve para a realidade, e esse pensamento olhando para si mesmo é como dar voltas numa sala fechada.
aliás, te contei? a mente mais prevê do que lê a realidade, e o que a gente consegue perceber da vida é uma matriz que se perpetua e repete de novo e de novo, o vértice que distorce o que acontece para fazer caber na caixa do que a gente já conhece.
assim penso que a experiência só vai até onde é possível perceber, e o modo com que vemos o mundo cria e limita o que o mundo pode ser.
outro jeito de dizer é que a gente constrói muitas armadilhas imaginárias e aprende a se mexer por aí com medo, sempre pisando torto para que elas não disparem.
armadilhas que assim tornam a dúvida improvável, mantêm a roda girando, reduzem as possibilidades.
armadilhas que transportam para longe o presente enquanto ele colapsa.
e armadilhas que todos os dias nos oferecem horrores e conveniências.
todo pensamento ou hábito muito agarrado pode virar armadilha assim, mas alguns abraçam perfeitamente nossos contorcionismos, essas jaulas conhecidas.
acreditamos ainda em suas promessas?
é que eu tenho me perguntado qual a nossa parte nesse acordo, chuchu.
aliás!, se não estivesse tudo assim dolorido, eu poderia te contar que andei tentando brincar.
e aí percebi que a minha dificuldade com a brincadeira é que ela pede muita dedicação a algo que parece inútil.
exatamente o oposto da preferência que tenho, e sei que dizer isso é uma bobagem sem tamanho, não pode ser verdade, mas ainda não consigo decifrar os mecanismos da graça.
imagino um faz-de-conta entre crer e duvidar, querer testar os limites da realidade, ser feita de boba pra variar, e com nada disso tenho grande intimidade.
mas analisar, consertar, acertar e organizar consigo fazer constantemente, com a minha face que está sempre pronta para solucionar e que por isso vê tudo como problema.
a parte da mente que cede à compulsão de criar objetivos e dar nomes pras coisas, que descende do olhar da hierarquia e da burocracia, daquela autoridade que crê que o argumento correto colocaria a história sob controle, e que também alimenta muito do que aprendemos a chamar de crise.
tento enxergar muitos passos à frente, mas sofro quando sei aonde vai dar essa estrada batida e também sofro pelas anormalidades que não são bem vindas, então está aí uma das minhas prisões.
o mundo não poderia ser linear, é claro, eu sei mas me esqueço porque tento deixar tudo consistente, achatar até que o banal pareça uma parede me separando do que a palavra milagre quer apontar.
fico assim com um raciocínio excessivo pensando em brincar, o que é o próprio absurdo, essa mente bonsai não porque linda e sim porque perfeitamente podada.
atordoa pensar quão rápido a poeira do normal me encobre os olhos.
há situações sinuosas e cheias de mistério que, mais cedo ou mais tarde, vão fazer soar risos ou lamentos ou mais provavelmente os dois, e quero saber experimentá-las quando a vida parece uma linha muito reta e muito clara e não posso contar comigo para fazer nascer alguma maravilha súbita.
é sobretudo por isso que preciso tentar o exercício impossível de me mostrar o que ainda não consigo ver.
estrelinha, chuvinha, cobrinha, vulcão.
o que alcanço com a clareza e a eficiência? e o que perco com elas? que graça tem essa bagunça?
ah, pelo menos trago boas notícias! a disposição humana para passar por inconveniências e ajudar outra pessoa de graça, aliás não, de ajudar por pura graça eu vejo todos os dias, não está em extinção.
fico buscando mais graça em cada um de nossos movimentos em direção uns aos outros, penso no favor, no prazer e naquela máxima de não negar copo d’água e coisa e tal.
também lembro que “graça” vem de “charis”, então parece que nosso carisma é ato divino, e este pelo menos está garantido.
mas ainda quero tirar os óculos da mente e deixar a paisagem ficar mais derretida, divertida, vidraça embaçada de respiração. aí poderia ser um lugar de descanso, exceto que me deixa muito inquieta, por quê?
não é bem como se eu quisesse mudar o conteúdo do pensamento, que é fácil, mas antes transfigurar meu modo de olhar as coisas, e aposto que essa parte não chega a te surpreender.
o segredo, suspeito, pode ser correr o risco de relaxar a ordem e tolerar mais fantasmas, mais indefinições, o que bem explicaria meu desconforto.
estou tentando te dizer que me parece necessário abrir espaço para o caos de dentro, que a repressão gasta energia, que essa energia poderia criar tantas novidades e todas essas coisas antigas que precisam de repetição.
é que a gente inventa lentes, molduras, armadilhas e manuais do mundo e se acostuma a usá-los distraídos, sem duvidar, mas preciso testar se a atenção liberada acessa as frestas, se me ajuda a lembrar que tudo isso não passa de um truque.
então aposto: brincando, brincando é possível se soltar, experimentar e fazer com que os caminhos não se estreitem muito.
tentar permanecer um pouco nos destroços do que pensamos que seria o nosso futuro, reordenar as peças até achar outro jeito de seguir.
às vezes imagino que consigo mexer nas circunstâncias recitando ideias de um jeito mais maleável, o que talvez seja meu modo de fazer graça.
a atenção, um holofote, a atenção, uma jarra que enche, a atenção, um leme, a atenção fisgada e também o anzol que puxa.
tento pescar desejos, distorcer o instante por esporte, aprender a ser canal, somente o oco da flauta por onde se move o sopro divino, como disse um poeta, e eu brinco que essa é só uma das vantagens de ser muito básica.
porque, felizmente, reconfigurar a arquitetura do tempo-espaço é coisa que todo mundo consegue alcançar, veja:
com o braço estendido para frente, olhe bem a sua mão aberta. mexa as dobras dos dedos, sinta a textura da pele, suas unhas, o calor no corpo.
agora pegue esse foco de atenção e afaste aos poucos, lentamente. para além da sua mão tem mais de você, tem a parte de trás da sua cabeça e o espaço onde está agora. em um ponto próximo talvez tenha paredes, muros, e mais distante tem ruas e pessoas, carros, plantações na terra, formigas e explosões, cheiro de fumaça, correntes de água salgada, montanhas, geleiras, tem o topo do céu.
experimente por quanto tempo consegue explorar essa atenção que não te puxa num vento de túnel, experimente a expansão.
a experiência só vai até onde é possível perceber.
ela pode ser fluida, receptiva, espontânea como a respiração, pode ser lenta como o mel que escorre da beira de um copo.
pode ser fluxo, desordem, criação e destruição como acontece na natureza com seus excessos que não cabem bem na mente.
pode ser um divertimento descabido feito fogos de artifício que estalam, estalam e cintilam em segundos, só pra a gente ter a graça de abrir a boca e dizer ooooh enquanto eles derretem no céu.
ou pode ser contraída como fica um organismo amedrontado.
agora pensando no medo lembrei das nossas tão transitórias casas. a sua que fica perto do oceano nessa cidade mítica e que daqui a alguns anos vai ser invadida pela água, a minha logo mais coberta pelo verde vizinho, lotada de insetos e musgo, tanto que já adianta os sinais de umidade.
imaginei a vastidão do espaço e do tempo como uma enorme boca que engole tudo tudo tudo, e a gente iludido correndo na língua achando que tem algum lugar pra chegar.
nossa agitação, fácil de confundir com alegria, falando mais alto que qualquer chance de contentamento. correndo continuamos mascarando as perdas, amortecendo os sentidos, remediando a dor no modo automático.
como parece irresistível superestimar a precisão e acreditar que ela nos guarda dessa destruição enigmática.
enquanto isso as plantas e os bichos e o mar e o magma se debatem sem objetivos, em seus processos cheios do que chamamos desperdício, que há tanto tempo se desenrolam como longas espirais; as mesmas que certa vez resultaram na gente e que muito em breve nos ultrapassarão.
ou não sei se é bem assim que vai ser, acho que essa é a versão otimista, e eu já rio só de pensar em fazer graça neste estado de coisas.
mas não quero te enganar, o infinito que nos ignora também me faz sentir como numa casa assombrada. tento sair e todos os cenários viram cárceres, qualquer ruído assusta.
nem sei quando aprendi a sentir assim, parece que começou muito antes de mim, um medo herdado de outros perigos que acontece de ser muito atual. é quando fico muito ciente de tudo que as palavras não podem fazer.
porque o que está revelado é de uma complexidade profunda, sem regras, sem definições e sem consensos. não conhecemos ainda seu nome.
olhamos a estrutura do tempo ao redor e ela parece aos poucos ceder, a futilidade fraturada nos põe sem chão, a ansiedade desce como um gato azunhando a carne.
assim todos nós precisaremos de um pouco de graça, e é justo por isso que não quero passar os dias em transe.
você já sentiu o peito expandir ao ver o horizonte depois de passar meses entre prédios?
não que importe ao resto do mundo, mas para mim é vital a resposta. de longe, como vou sentir que você sabe?
tentar brincar sozinha tem esse quê de alucinação e sinto que faz falta a sinestesia do encontro, porque nem a mística nem a lógica nem a religião nem a política me seriam mais instrutivas que os infinitos triângulos de pintas da sua pele.
de perto eu sei que o entendimento é um detalhe, a amizade é inútil, a graça é só ficar junto.
e eu talvez nem esteja pronta para aprender sobre essas coisas, aí invento muitas desculpas, isso também considerei.
mas não posso me chatear, estamos assim e é preciso começar acreditando ou, pelo menos, semiesquecer que ainda não sei do que estou falando.
reconheço que é um pedido imenso, convite com jeito de provocação, então é por isso mesmo que te mando.
pode parecer piada dizer que a gente consegue desfrutar de alguma graça a esta altura em que estamos, é claro que eu não te diria algo assim.
mas diria hipoteticamente que vendo de longe ou nessa tela talvez realmente pareça impossível, só que se a gente chega perto, bem perto do mundo dá pra ouvir o zumbido de tudo, tentar soar junto com ele, descobrir que a gente mesmo é zumbido.
para dentro e para fora a realidade se desdobra e desdobra infinitamente, somos ingredientes misturados sem receita, tudo posto em negociação, e não bastasse tentamos deixar espaço para a mágica, espaço para deus, espaço uns para os outros e dançar com a sorte até que ela caia no colo.
ainda não sei dizer se é tragédia ou comédia, mas toda essa confusão está por aí no mundo pacientemente esperando que a gente aprenda a dizer ven aquí gatito gatito, cálmate ahora, ven aquí...
mais tarde vou pensar nos protocolos que tentam coordenar essa bagunça, antes é preciso esquecer tudo isso, dormir, papear, dar risada, gastar tempo e assim ficar mais rica de tempo nas mãos, ser mole pra caber onde preciso ir, solta pra sair quando der a hora, esquecer o método.
por enquanto seremos eu, você, nossas mãos, as laranjeiras, as cidades, nossas discussões sem desfecho, compras desnecessárias, esquemas intrincados, desperdícios, planos e palavras inventados com o objetivo único e secreto de continuar aqui, continuar vivendo, só continuar.
desconfio que algum modo mais divertido de existir existe e procurando ele se mostra, só que antes a gente tem que deixar.
e poxa, brincando, brincando acabei de inventar um jeito melhor de te dizer tudo isso, mas agora já estou indo.
você entendeu, né? atenção, relaxamento, brincadeira, criação, declínio, e é assim que vai acontecendo. não quero seriedade nenhuma.
nem venha me dizer que não te contei como mexer na arquitetura de tudo, pois se eu estava agora mesmo gastando seu tempo, e é claro que estava! não foi pra isso que você veio?
e já que estamos aqui sem plano, vou aproveitar pra dizer que o improviso feito no cuidado vale o mesmo que o destino bem definido, penso que algo de bom pode vir daí.
uma coisa bonita e inesperada, essa graça que é basicamente um favorzão dos céus, misericordioso e imerecido, fortuna do tipo mais improvável. algo que lá na frente diremos ter sido de graça só porque não lembramos de sofrer no caminho.
enfim, acho que pode ser gostoso dispensar objetivos e quero poder te deixar algo a desejar.
então se a minha conversa te irritou, ótimo, quer dizer que você está assim como eu e não consegue acordar desse sono.
não se esqueça: a mente de míssil na delicadeza se desorienta porque não encontra nada para resolver.
e acho que nossa hipnose é igual soluço, só vai passar com risada ou susto.
testo assim um antídoto que funciona pra mim, que estou tentando contornar a ordem, mas que não serve de nada se o veneno for outro. agora é sua vez.
se parece que se perdeu ou caso se sinta tropeçando, esbarrando em si, caso não esteja se entendendo nem saiba aonde foi sua atenção, seu tempo, sua vontade, pronto, comece por aqui.
se não sabe o que acabou de acontecer, volte lá no começo.
o resto é preciso deixar ao acaso, abrir espaço para um próximo passo experimental.
vou largar as pontas soltas e não te dizer mais nada, quero que essa conversa caia a seus pés como uma fruta madura. quando a gente tenta explicar muito as armadilhas disparam. escape.
olhe bem a sua mão, perceba você e além.
e se nada do que eu disse fez sentido, pode rir de mim, é certo, que aí não deixa de ser engraçado também.
ep6
este vídeo é, na verdade, uma mensagem de áudio legendada. se quiser ouvir, basta clicar para abrir no navegador.
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