Eu estou envelhecendo. Todos nós estamos, mas eu tenho me dado conta disso cada vez mais nos últimos meses. Eu culpo um pouco essa fase de melhora da pandemia, antes a gente vivia com um foco tão grande em sobrevivência que não sobrava atenção para outras coisas.
A pandemia também roubou parte do nosso tempo. As coisas explodiram aqui no Brasil em março de 2020, um mês depois de eu ter feito 35 anos.
Eu me lembro do primeiro episódio da série This is Us, quando uma das personagens faz 36 anos junto com seus irmãos e reflete que agora passou pro campo dos trinta e muitos, não mais trinta e poucos, que era um lugar mais seguro quando você ainda não tem a vida que planejou e que gostaria.
Eu tenho 38 anos agora e o tempo inteiro me pego pensando no peso disso, mas se eu comento com alguém essa pessoa vai me dizer que eu pareço mais jovem. O que pode ser verdade.
Eu e a minha família temos sido tragicamente jovens, sempre os mais novos em todos os lugares em que circulamos por causa do Alzheimer precoce do meu pai. Ele mesmo fez 70 anos esse ano com boa parte do cabelo preto ainda, poucas rugas e um estado de dependência que os desavisados pensam que é por conta de um AVC, alguma coisa mais juvenil. Falar a verdade sempre desperta olhares de horror.
Eu tento falar de mim mas a conversa sempre volta para o meu pai, o assunto principal da minha vida há oito anos. Eu sempre digo que mal fiz trinta anos e fui catapultada ao mundo das pessoas de cinquenta, aquele em que você visita os pais em casa de repouso, conversa com médicos sobre cuidados de fim de vida e pensa na sua solidão quando todas as suas pessoas referência já se foram.
Sofrer por envelhecer tem me parecido inevitável e ao mesmo tempo um tédio, inútil demais.
Eu não tenho filhos. Marido nunca quis ter filhos. Eu achava que queria até descobrir uma endometriose e me dar conta de que tiraria todos os órgãos reprodutivos na mesma hora se isso significasse não ter dor (não precisei, o Diu Mirena resolveu tudo). Depois do exame que me deu o diagnóstico a minha médica passou quase a consulta inteira falando das alternativas possíveis se eu quisesse engravidar e não conseguisse naturalmente.
Eu me senti tão invisível porque em nenhum momento coloquei isso como questão. Parecia que eu mesma já não importava, eu era só um invólucro para o novo messias.
Quando você não pretende ter filhos as pessoas ficam muito preocupadas com a sua velhice. Quem vai cuidar de você? Como você vai viver sozinha? E se você se arrepender? E se o seu marido te largar e acabar engravidando outra?
Antes eu não pensava tanto nisso, parecia tão distante, mas agora a cada ano que passa eu me sinto uma mercadoria apodrecendo no mercado. Eu sou alguém diante de um portal que se fecha e nunca mais vai abrir, um portal rumo a uma terra para onde eu não quero ir, só que é um portal estilo aqueles de desenho dos anos 80, brilhante, barulhento, um espelho pra outra realidade.
Às vezes eu me pego pensando se o filho que eu não quero ter poderia resolver todos os meus problemas. Quando meu pai adoeceu me deixando um vazio imenso eu também me dei conta de que, veja só, eu posso fabricar pessoas da minha família. Eu poderia substituir meu pai por uma outra criatura manufaturada por mim. Eu me senti poderosa como o Dr. Frankenstein.
Quando a pandemia começou eu pensei a mesma coisa.
Só que quando eu estou feliz, ajustada e satisfeita eu sinto que esses delírios de procriação são isso mesmo, delírios. Inventar uma pessoa só pra eu poder cuidar me parece loucura, eu que não aguento mais cuidar das pessoas que já existem, incluindo eu mesma e todas as minhas doenças crônicas.
Eu não condeno quem tem filhos, pelo contrário, eu gostaria de poder ajudar mais e ser parte da tal da vila que protege as crianças. Eu gosto de crianças quando penso que posso ser só uma coadjuvante na vida delas.
Outra parte do meu medo de envelhecer vem do pânico de ter as mesmas doenças que os meus pais tiveram. Eu monitoro meus tios maternos e os irmãos biológicos do meu pai como se eles fossem o grupo controle de um grande experimento.
Minha mãe foi a única pessoa de toda a família dela a ter tido não só esclerose sistêmica mas qualquer doença autoimune. As outras mortes que acontecem lá são por acidentes de trânsito, doenças cardiovasculares e câncer (que proporcionalmente nem é tão prevalente).
Do lado do meu pai a mesma coisa, nem as pessoas muito velhas têm Alzheimer. Há alguns meses recebi o vídeo de um tio do meu pai que não só já tinha passado dos cem como ainda era ágil e lúcido. Ele segurava um bebê e ainda dançava com ele. Achei ao mesmo tempo confortante, melancólico e inacreditável.
Meus pais eram basicamente duas pessoas azaradas que resolveram se unir e transformar a prole numa questão de Enem de análise combinatória de desgraças.
Uma vez eu li que Nietzsche era uma pessoa tensa em parte porque ele acreditava que iria morrer do mesmo jeito e com a mesma idade que o pai. É difícil fazer esses diagnósticos retroativos, mas hoje muitos acreditam que o Seu Nietzsche tenha tido um tipo de demência vascular que era sim hereditária e possivelmente foi passada adiante pro filho.
Nietzsche apresentou sintomas semelhantes aos do pai antes de morrer, mas conseguiu viver vinte anos a mais.
Qual a utilidade de ter tanto medo dessas coisas que ninguém controla? Nenhuma, mas se fosse fácil assim mudar de foco ninguém gastaria tanto com terapia.
O que eu sinto que me deixa mais calma são relatos sinceros de pessoas mais velhas que eu e que estão lá dando seus jeitos. Mulheres falando sobre climatério e menopausa sem dourar a pílula mas sem negar também que existem tratamentos. Mulheres idosas que passaram a ter limitações mas também se sentem pessoas mais completas do que quando eram mais jovens.
E mulheres que nunca se casaram ou se casaram várias vezes, pessoas com filhos e sem filhos, de todas as orientações possíveis, com e sem deficiência, enfim, uma amostragem bem ampla da experiência humana.
E onde eu acho tudo isso? No jovem Tiktok.
Antes da morte da Rita Lee eu já tinha visto um vídeo em que ela dizia que queria envelhecer como feiticeira, com o tempo a seu favor, e não contra. Agora tenho visto vários outros momentos dela que expandem essa ideia.
A personagem mais poderosa da série Dark ( a minha favorita como já disse várias vezes) é uma mulher que aparece principalmente na meia idade e já idosa. Quanto mais velha ela fica, com cabelos brancos compridos, ar de sabedoria e roupas práticas, mais maravilhosa ela se torna, bem bruxona mesmo. Claudia definitivamente sabe jogar esse jogo.
Eu me conforto também de saber que essas questões todas não são só minhas, eu e outras mulheres podemos passar por isso juntas. E pensando na ideia de sermos todas feiticeiras talvez a nossa força esteja mesmo em criar o nosso coven, o nosso grupo, a nossa mágica em conjunto.
Quer fazer parte também?
Caramba, me identifiquei muito. Você colocou em palavras muita coisa que fica na minha cabeça, sabe? Obrigada.
Adorei o texto, Camila. Já perdi as contas de quantas vezes já ouvi "Quem vai cuidar de você quando você envelhecer?", desde motorista do Uber até colega de trabalho.
Por muito tempo minha psicóloga tentou me fazer pensar se essa minha vontade de não querer ter filhos vem do fato de eu ter um pai com muitos problemas de saúde desde que eu estava na faculdade. Não é uma tarefa fácil cuidar de um parente doente. Até hoje não sei bem a resposta. Mas estou em paz com a minha escolha.