Em 2012, escrevi este texto pra uma revista que não sei se saiu. A Belle me lembrou dele, reli e dei uma editada. Não é justo ele viver numa gaveta empoeirada. Espero que você se divirta como eu me diverti escrevendo e relendo. E que consiga imaginar as ilustrações que não sei fazer nem tenho dinheiro de comprar.
1.
Tudo frito é bom: coxinha, bolinho de arroz, batata frita; torresmo, sonho, pastel. No sentido figurado, quem frita sofre e quem está frito se ferrou. Pro bem ou pro mal, estamos imersos no óleo quente e de lá só sairemos crocantes, dourados, brilhantes.
Antes de fritar, é preciso esquentar o óleo. Os métodos de cocção se dividem em secos e molhados. Os molhados usam água: cozinhar e cozinhar no vapor. Os secos são grelhar, assar, gratinar e fritar. Harold McGee, autor do clássico Comida&Cozinha, ensina: "A alta temperatura [do óleo] desidrata rapidamente a superfície [do alimento] - por estranho que pareça, a fritura é uma técnica seca".
Para fritar, o óleo deve estar entre 175oC e 225oC. A água, como sabemos desde a escola, não passa de 100oC - a não ser que você coloque tudo na panela de pressão. Mesmo assim ela não chega aos 175.
Água nunca vai fazer txxxxxxxx. Ela faz blub. Se estiver muito quente e for pouquinha até chega num blib-blib-blib. Mas não forma casquinha, nem deixa a comida bronzeada e lustrosa.
<imagem: ilustração da Maggie Cowles de um tempurá de camarão saindo da panela>
E está aí, no bronzeado, o txxxxis da questão (ta-da-tsss). É preciso voltar ao McGuia-McGee. Todos os alimentos têm sabor. Mas os sabores delirantes vêm de transformação das moléculas de sabor do alimento in natura em estruturas mais complexas. Cozinhar é fantástico! E um dos processos de transformação de sabores simples em delirantes é o escurecimento. Há, grosso modo, dois tipos de escurecimento: a caramelização e as Reações de Maillard.
A caramelização é o que acontece com o açúcar que vai pra panela quente. Ele derrete, escurece e se você deixar esfriar de novo nunca voltará a ser pó-pálido. Ele vira um puxa amarelo escuro ou uma placa marrom. Você já deve ter visto isso acontecer. Agora lembre do que acontece com o gosto. O açúcar branco, em pó, é doce e ponto final. Depois de caramelizado ele ganha outros gostos. "Entres eles, ácidos
orgânicos de sabor azedo, derivados doces e amargos, muitas moléculas
voláteis fragrantes e polímeros marrons" (explica McGee). Hmmmm, polímeros marrons…
Enfim, um leite com açúcar é leite adoçado. Um leite com açúcar queimado é poção que cura gripes, carências e casos leves de dor de cotovelo.
<imagem: ilustração da Maira Kalman de um leite com caramelo numa xícara linda, numa mesa linda com duas amigas conversando ou uma mulher sozinha olhando pra fora da janela>
Se você é uma desafortunada pessoa que não sabe o que é leite com açúcar queimado, faça uma pausa e siga as seguintes instruções: em um fervedor, coloque um tanto de açúcar e leve ao fogo baixo, que é pras coisas irem acontecendo as poucos e você não tomar um susto.
(Quanto açúcar? Depende do tamanho das suas dores e/ou da sua tolerância para mergulhos na doçura. Pensa assim: quanto tempo você aguenta ficar num abraço apertado? Esse tanto de açúcar.)
O açúcar vai virar líquido e começar a escurecer. Deixa ele ficar com uma cor bonita de caramelo, cuidado para não queimar, que aí ele amarga. Então coloque um tanto de leite - se for só para você, mede na xícara que você vai usar pra tomar.
Como o leite está frio, o caramelo vai endurecer na hora. Não entre em crise. Fique mexendo. Conforme o leite esquentar, o caramelo vai esquentar também e, devagarinho, vai se dissolver no leite, que começa a ficar com uma linda cor entre amarelo e rosa claro. Quando você perceber que o caramelo está todo dissolvido, vire o líquido numa xícara.
Espere esfriar um pouco e tome esse belo exemplo das transformações de sabor.
Pois bem, a caramelização é simplona perto das Reações de Maillard. Enquanto a caramelização é só açúcar (ou seja, carboidrato), as reações de Maillard incluem carboidratos e aminoácidos (proteínas). Por isso "os sabores de Maillard são mais complexos e carnosos do que os da caramelização". Ou seja: tudo frito é bom.
A fritura é tão tchans que até seu “defeito” é com dê de delícia. Como ela se dá em alta temperatura, a parte de fora tosta antes de a parte de dentro ser cozida. Um dos desafios é garantir que algo frito esteja no ponto no meio. Use isso a seu favor e você terá uma milanesa de carne crocante com miolo cor de lingerie, como gostam de descrever os fetichistas do bife (e da lingerie).
<imagem: ilustração da Laura Teixeira bem surreal de um bife à milanesa usando um corset com cinta-liga no Carnaval>
Crocantes e suculentos, péga o papel toalha que vamos escorrer a gordura.
2.
Eu com meu óleo quente, nós inventamos, já tem algum tempo, um trocadilho pra uma letra dos Beatles. Trocadilho é tipo fritar: joga no óleo quente e vê no que dá. A coisa pururuca, vai daqui para lá, e você mal sabe o que vai sair na escumadeira. O que veio foi que I’m flying, de I am the Walrus, depois do óleo quente, virou I am frying.
Porque, venha comigo: se você vê que você é ele e ele é você e nós estamos todos na mesma, meu amigo, todo mundo fritou junto.
Ele é o homem-ovo, nós somos o homem-ovo. E ovo, cá entre nós, é um dos ícones da fritura. A clara branca com as bordinhas douradinhas, a gema como se fosse um sol, pronta pra ser derramada sobre o arroz branco quentinho, que começou, ele mesmo, com a delicada fritura do alho e da cebola, para refogar os grãos.
Voltando aos Beatles, o que é frito frita - e não voa. Então que aqui seja falado (fritem com força, fãs-fiéis): eles falharam. Era frying e não flying.
A não ser que na cabeça deles fritar seja igual voar, o que leva inevitavelmente ao pastel de vento, uma forma clara de voo frito. Se você troca o v de lugar em ovo frito, vira voo frito. Talvez tudo seja um mero erro de digitação, um ovo que tinha teclado pequeno, digitou voo e saiu pastel de vento. Isso explicaria porque, no processo de edição de um texto, as palavras que ficam perdidas depois de muita mexeção sejam chamadas de pastel. Fritei.
Mas vamos adiante, que virar as costas para o óleo quente é perigoso.
Água com gás é água frita.
Champanhe é vinho frito.
Gim tônica é o drinque mais frito.
E cerveja é cerveja.
Sexo, chilique e tapa na cara: frituras físicas. Carnaval é a festa mais óleo quente de todas. E é claro que se apaixonar faz txxxxxx.
Torresmo é a prova frita de que a fritura é do território da sacanagem, da baixaria. Ela engana, bagunça. Só vou pegar mais um, tá tão sequinho, não gosto de fritura encharcada, amanhã volto a malhar e começo dieta também. Suco de couve em jejum, é ótimo, me alcança mais um torresminho, por favor? E passa a cachaça?
<imagem: Jane Rosenberg pinta uma cena de boteco em BH como se fosse um misto de cena de julgamento e cena de rua em NY>
3.
O som da fritura fritando é txxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxx. Mas suas nuances dependem do óleo - da sua textura, da temperatura. Se a fritura for industrialzona, com óleo ralinho, usado e reusado, sujo cheio de pó preto do resto das levas anteriores, faz um sssssh sosso, sibilante, sem viço.
Se for fritura caipira faz um plócs: txplóc-txxplóc, eia, cavalinho. É que naquela banha às vezes tem um tico de água e vai dando esses pipoquinhos. E sem falar que tem gente na roça que pinga água no bife. Upa, upa, frigideira.
A fritura mais profissa, com óleo novinho na temperatura certa, faz um barulho de platéia em fim de espetáculo. É um tchuóóóóó com algo de ovação. Um som borbulhante sólido e pelando.
Mas de todos os sons da fritura, dela sendo frita ao créc, cróc, crocrocro, da mordida e mastigada, o mais poético é o do sonho de padaria.
<imagem: a gente ressuscita o Claes Oldenburg, ele faz uma escultura de sonho>
Como ele é bem gordinho e precisa cozinhar por dentro e ficar com aquela casca fininha, uma pele, é frito a temperatura mais baixa possível, algo entre 170oC e 175oC.
É o mínimo, a fronteira entre o frita e o não-frita. É um fritura delicada, sem chós nem chiados. Sonhos fritam em silêncio.
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E esse é um texto frito. Delicioso!
Mano, só vc pra me fazer lacrimejar com um texto sobre fritura