1.
Certo dia, um amigo meu virou para a esposa e perguntou: do que você abriria mão para salvar o planeta? Isso faz uns anos, e até hoje acho que foi a coisa mais honesta que já vi alguém próximo falar a respeito de mudanças climáticas. Escrevo esse texto com meu aquecimento a gás sibilando. Você talvez esteja lendo no fresquinho do ar condicionado, enquanto a máquina expele ar quente em uma atmosfera de verão tropical urbano que já é um caldeirão de Satã. Uma coisa muita humana é apontar o dedo: a culpa é dos bilionários, então temos nossos momentos breves e modestos de vingança assistindo Saltburn ou rindo da implosão de um submarino; a culpa é dos países desenvolvidos, até o Lula diz isso, não diz?, e em termos numéricos certamente está certo, mas não há nada de intrinsecamente mau em um habitante do norte do mundo como não há nada de instrinsecamente bom em um habitante do sul global; a massiva maioria dos brasileiros adoraria consumir como alguém dos Estados Unidos, não vamos ser hipócritas. Qual é o custo planetário daquela picanha que Lula deseja – e com certa razão – que todo mundo possa comer?
2.
Não consigo lidar com problemas que são muito maiores do que eu. Só queria dizer que há duas coisas tão humanas quanto apontar o dedo que nos deixam numa puta enrascada. A primeira delas é a insatisfação permanente. Parece que isso já estava lá no budismo. Segundo o autor Robert Wright – no livro que lemos para o clube –, a palavra dukkha foi erroneamente traduzida por sofrimento (vivemos num estado de sofrimento constante, etc): o termo mais exato seria insatisfação. Ainda de acordo com Wright, isso também faz sentido na teoria da psicologia evolutiva: por que a seleção natural premiaria alguém que fica satisfeito com o que consegue? “Um único ato sexual, depois uma vida inteira deitado curtindo aquela sensação. Não é um tática muito boa para passar um monte de genes para a próxima geração!”
Portanto o prazer não pode durar para sempre, primeira regra. E a antecipação precisa gerar mais prazer do que a realização em si.
3.
Faz alguns dias que encomendei um tênis de corrida. Devo ter entrado centenas de vezes no site para ver por onde andava. Saiu de Louisville, Kentucky. Passou pelo Kansas e pelo Texas, chegou a um lugar chamado Casa Blanca, Novo México, e cruzou o deserto de Mojave numa madrugada. Enquanto estou trabalhando, meu ouvido fica atento a uma possível chegada do caminhãozinho da Fedex. Provavelmente vou ficar feliz quando colocar o tênis no pé e sair para correr, mas desconfio que esse estado de satisfação vai diminuir em pouquíssimo tempo. O tênis vai “normalizar”, vai ser parte da rotina, e, sem o verniz da novidade, simplesmente parecerá que ele sempre foi meu, o que tira boa parte da graça. Seleção natural filha da puta.
4.
A segunda coisa muito humana que nos coloca nessa enrascada planetária – e que talvez pareça paradoxal em relação à primeira – é que adoramos dar significado a objetos. Você viaja e quer comprar aquela coisinha para lembrar da viagem. E quer guardar aquela cadeira que foi do seu avô. E aquela luminária. E aquele ali é o primeiro sofá comprado com meu primeiro salário, como se desfazer dele? E o brinquedinho do meu filho que ele adorava tanto quando era menor. Coisas, coisas, coisas. Grudamos nelas narrativas, passado, nostalgia.
A coisa mais esquisita que eu guardo é um valete de paus que encontrei um dia no chão em uma cidadezinha francesa, em 2003. Não tenho nenhuma lembrança especial daquele dia, não foi por isso que recolhi a carta do chão e coloquei na carteira; acho que atribuí algo meio mágico à carta, como se ela carregasse uma mensagem que eu não era – e não sou – capaz de compreender. E depois o tempo passou. E ficou muito tarde para colocar aquilo fora. A narrativa que permaneceu grudada nela é: eu tenho essa coisa há muito tempo, e isso por si só faz ela ter importância.
O que, pensando bem, soa totalmente insano.
5.
E começou o ano. Nossa mente sente a brisa do “fresh start effect”, e os dedos têm aquele comichão incontrolável de traçar metas ousadas. Como evitar não se sentir um fracasso em fevereiro? Essa semana, ouvi um podcast com o psicólogo e pesquisador da UCLA Hal Hershfield sobre resoluções de Ano Novo. Vou trazer aqui algumas coisas que apareceram no episódio (link no final do texto), sob o risco de vocês acharem tudo bobinho – mas boba na verdade é nossa mente, que precisa ser enganada desse jeito. Vamos lá.
6.
De acordo com a pesquisadora Ma Sharif, estabelecer “reservas emergenciais de metas” pode ser uma maneira eficaz de você não ser encurralada por seus próprios objetivos; em vez de determinar “quero me exercitar cinco dias por semana”, você estabelece sete dias de treino com dois de reserva emergencial (para quando não teve tempo, para quando não está a fim, etc). Os números, obviamente, são só um exemplo. E sei que tudo parece apenas uma mudança sutil no enunciado, mas o fato é que aparentemente pesquisas provam que essa cartada do “hoje não vou e isso já estava previsto nos meus planos” é de fato bastante eficaz.
7.
Outra dica que vai nessa toada é traçar um gradiente de metas, no lugar de uma meta fixa. Em vez de você pensar “quero meditar três vezes por semana”, e sofrer brutalmente caso não consiga fazer isso, você estabelece “quero meditar de uma a cinco vezes na semana”. Se atingir o mínimo, legal, ainda pode se motivar para chegar no máximo, mas pelo menos vai ter enxotado a sensação de que não cumpriu a meta muito audaciosa e restrita que estabeleceu para si mesmo.
8.
Essa dica é de Daniel Goldman: faça a coisa mais fácil primeiro. Assim você sai da inércia e provavelmente gera energia o suficiente para fazer as outras coisas que precisa fazer.
9.
Sob o risco assustadoramente crescente de eu estar virando uma coach, termino com a dica de Hershfield que mais faz disparar meu alarme interno de cafonice: escrever uma carta para o seu futuro eu. Meu impulso é debochar dessa ideia, erguer as sobrancelhas em completo desprezo, mas, depois de alguns segundos, fico pensando se não chegou a hora de ir destruindo essa prepotência intelectualizada que carregamos conosco. Por que isso seria mais absurdo do que qualquer ideia de Freud ou Lacan? E, se ainda não pareço pronta para abraçar a carta, a ideia que está por trás dela me parece fazer todo o sentido; superestimamos as consequências que nossas ações do presente vão ter no futuro, e subestimamos as consequências do que, na linha do tempo, virá depois. O futuro é tão abstrato que nos parece menos emocional; olhamos para ele como uma consequência fria de nossas decisões mais racionais. Não conseguimos conceber a ideia do que seremos de fato: ainda esse depositário maluco de emoções extremas, bobas, contraditórias, guardando numa gaveta um valete de copas todo estropiado pelo tempo.
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Aqui está a entrevista que mencionei com Hal Hershfield (em inglês). Também recomendo fortemente o episódio com a Esther Perel, minha guru.
Segue o cronograma atualizado de nossas próximas leituras:
9/2 – Migrações, Charlotte McConaghy
12/3 – Um homem só, Cristopher Isherwood
9/4 – O túnel, A. B. Yehoshua
9/5 – Edifício Yacubian, Alaa Al Aswany
10/6 – Temporada de Furacões, Fernanda Melchor
9/7 – O Reformatório Nickel, Colson Whitehead
8/8: Como se estivéssemos em palimpsesto de putas, Elvira Vigna
Como prometi para quem esteve no último encontro do clube (foi uma delícia), seguem os livros citados por mim e pelos participantes: 10% mais feliz (Dan Harris), Apaixonado pelo mundo (Yongey Mingyur Rinpoche), Incógnito: as vidas secretas do cérebro (David Eagleman), Humanidade: uma história otimista do homem (Rutger Bregman) e Utopia para realistas: como construir um mundo melhor (Rutger Bregman).
Carol, não sei se você já foi atrás disso, mas no tarô o valete de paus simboliza, entre outras coisas, a disposição de fazer acontecer. É uma carta que fala sobre ver novos horizontes e ter a determinação de colocar as coisas em prática (paus, por excelência, é um naipe de ação). Enfim, achei curioso você mencionar isso em uma correspondência que fala sobre metas. Mais uma sincronicidade deliciosa da vida
Eu, como sou cafona desde sempre, escrevo cartinha pro meu eu futuro. Adoro recebê-la no fim do ano. Na semana passada eu parei tudo e escrevi. Exagerei até, mas abandonei um pouco o formato lista, dei bronca, acariciei e fui falando sobre mudanças que quero operar, coisas que quero alcançar, mas dessa vez de um jeito mais solto. Para não esquecer, eu escrevo todos os dias no diário uma lista de 5 coisas que estão no topo do que quero para esse ano. MAS, fiquei mesmo foi curiosa com a resposta que seu amigo deu.