alcateia #06, você entraria para um culto? (trabalho conta?)
Eu sim, mas não tipo de propósito, acho que seria o tipo de pessoa que de repente ia perceber opa, será que to num culto?
Eu sim, mas não tipo de propósito, acho que seria o tipo de pessoa que de repente ia perceber opa, será que to num culto? Amo histórias de cultos - Manson Family, Jim Jones, Osho, NXIVM, então altas probabilidades de você citar um e eu conhecer os detalhes da prima da amiga do namorado de um dos participantes, sabe? (Inclusive, já escrevi sobre o tema para a Editora Intrínseca em um texto chamado cultos e mortes na década do paz e amor).
A mesma coisa com scammers: Caroline Calloway e Anna Delvey, por quem rola até um pouco de admiração (espírito #girlboss) e os caras lixo tipo o do Tinder que com certeza me enganariam total. Não falo isso com orgulho, pelo contrário, demorou para eu admitir para mim mesma tamanha fraqueza.
Em certo nível, nossa relação com trabalho é parte desse cenário. Na adolescência, assistia sem parar a reality shows com lições de carreira tipo “se você vai chorar, sai da sala, se você é sensível e se sente ofendida, foda-se, porque sso não é terapia em grupo, então supera: a gente não é malvada, mas a gente vai falar coisas malvadas sim”. E o culto ao trabalho é o primeiro em que caí. Nossa servidão voluntária é um sintoma da sociedade do cansaço (alô Byung-Chul Han, obrigada pelos tapas na cara!) e ter burnout é tipo ritual de passagem.
Justificamos nossa servidão voluntária com busca por dinheiro, segurança e até satisfação pessoal, em um processo que acaba se tornando identitário. Minha amiga Lidiane escreveu um texto para a Obvious explicando que quem ama o trabalho tem muito mais chance de ter burnout, segundo pesquisas explanadas na revista Allure.
Trabalhei no corporativo de uma empresa que lidava com venda direta e, como toda empresa do tipo, tinha uma mentalidade coletiva fortíssima. Tipo aquela história engraçada que viralizou há algum tempo sobre uma pessoa que foi pra um encontro marcado no Tinder e descobriu que era reunião da Hinode. E foi tão engraçado porque todo mundo sabe como é ser abordado por alguma pessoa do seu passado, que surge do nada para tentar te convencer a participar de alguma marca de marketing multinível. Inclusive, um pequeno parênteses: se você já passou por isso, por favor compartilhe essa newsletter para mais duas pessoas e peça que elas compartilhem para mais duas.
Olhando para a Clarissa daquela época, quase não me reconheço (inclusive, minha primeira briga com minha amiga Amanda que conheço há 18 anos foi ali: rolou influência de duas pessoas, deslumbre, e o começo de um desvio de caráter que serviu de lição). Essa mesma amiga me entregou de presente o livro póstumo de Leonard Cohen com um recado que me salvou: ela me disse que eu deveria sempre me lembrar de onde me sinto em casa, e é nas palavras.
Só que esquecemos quem somos em cultos: eles exigem um compromisso altíssimo de seus membros, exibindo uma receita de bolo para mudanças positivas, com promessas de uma vida nova e livre em troca obediência mantida com sistemas de influência e controle formais e informais, e com intolerância por críticas ou desacordos externos e até mesmo internos. (Seria esse o manual da ideia de profissionalismo?)
Em um dos meus ensaios favoritos da New Yorker, a cineasta Guinevere Turner, por trás do filme “Charlie Says”, fala sobre a infância no culto Moonies. Em certo momento, ela escreve: “Como indivíduos, como podemos dizer quais sistemas de crença são corretos ou errados? Quando eu era jovem, perguntava para minha mãe se ela realmente achava que iríamos morar em Vênus. Quer dizer, pra começo de história, é um planeta inabitável para seres humanos. É complicado, ela me dizia. Você consegue reunir um monte de ideias conflitantes às vezes.”
Como explicar que, no norte da Guiana, em uma cidadezinha pequena criada pelo Projeto Agricultural Templo do Povo, em 1978, mais de 900 pessoas tomaram Kool-aid temperado com cianeto a pedido do seu líder no maior suicídio (ou assassinato) em massa da história? O evento com maior número de mortes de cidadão norte-americanos até o 11 de Setembro foi liderado por Jim Jones. Talvez na mesma linha, como explicar que deixamos de comer e dormir, nos esgotamos a ponto de ficar doentes, cometemos suicídio e nos desesperamos por trabalho?
Alguns dos aspectos de cultos incluem controle, fazer o indivíduo se sentir especial, explorar o desejo de pertencimento, oferecer recompensas pelo esforço, isolar o indivíduo do grupo social - entre outros, claro, mas creio que esses sejam os que mais se adaptam à nossa ideia de construir uma carreira. A dissonância cognitiva faz com que a cada concessão seja mais difícil admitir que está sendo enganado. Principalmente para si mesma.
Pelo menos no home office a gente não precisa sair da sala pra chorar, né? #piadaescrota
E aí, vamos trocar histórias de guerra? Conte-me sobre seu burnout!!!!
Para mergulhar no tema:
Cultos e mortes na década do paz e amor, meu texto para o blog da Editora Intrínseca
“As garotas”, Emma Cline, livro de ficção *incrível* que aborda o tema
“A casa”, Chico Felitti, sobre João de Deus
Cult education, com recursos para compreender como funcionam cultos
Os 8 critérios de reforma de pensamento aplicados no culto NXIVM
“The Vow”, documentário da HBO
“Wild Wild Country”, documentário na Netflix
“A sociedade do cansaço”, Byung-Chul Han
“Freak”, clipe da Lana Del Rey inspirado em Jonestown
“Go outside”, clipe do Cults com cenas reais de Jonestown (que foi tirado do ar)
Brian Jonestown Massacre, que sim, é uma ref direta
Clarissa, preciso te dizer tal qual o comentário da Camila Freire "não sei que bruxaria foi essa mas a newsletter chegou na mesmíssima hora em que eu" terminei de assistir ontem o documentário da HBO sobre a líder religiosa e guru de dietas Gwen Shemblin - The Way Down.
Também amo histórias de culto e sempre acompanho tudo relacionado a isso, até por que cresci numa igreja evangélica (mas larguei há quase 20 anos) e passo por momentos de 'I can relate' em tais histórias. Vou até recomendar sua news na minha próxima newsletter! =))
Não sei que bruxaria foi essa mas a newsletter chegou na mesmíssima hora em que eu checava se o podcast Sounds like a cult tinha episódios novos hahah
Eu gosto dele porque fala de coisas bem diversas tipo família real ou ser fã da Taylor Swift