Sangrar com fé (e um pouco de dor)
Leituras do Natal da saudade e das lembranças das máquinas de raios-x, com uma festa idílica para lembrar que a vida é boa sim
Arte da norte-americana Jen Lewis, a partir de seu sangue menstrual, citada por Sinéad Gleeson em 60.000 milhas de sangue, um dos ensaios de Constelações
Em algum mês entre dezembro de 2007 e abril de 2009, eu me deitei na cama do quarto do meu então namorado e seu pai, médico, sentado na cadeira em frente, me consolou:
“Mas vocês poderiam ter me consultado. Vai dar tudo certo. Medicina não é uma ciência exata. Em anos de profissão, já vi acontecerem ‘milagres’ que a ciência não tinha meios de explicar”.
Ele não era religioso, mas tinha fé no trabalho e fazia jus ao juramento de Hipócrates. Dr. Paulo Samuel, com quatro vacinas da Covid tomadas, sucumbiu em fevereiro de 2023 da doença que nos apartou, apavorou e tirou bons anos de nossas vidas. Depois, tirou a dele.
Foi exatamente essa cena que me veio à mente na noite do último dia 24. Com dor de garganta, um fiapo de voz, fui pro mesmo quarto de anos atrás e repassei nosso diálogo - um dos tantos que tive com meu sogro em 20 anos de convivência. O “milagre” a que nos referíamos naquela conversa era a tentativa da gravidez que viria a gerar o Francisco, meu filho que faz 15 anos no próximo dia 29.
Francisco entrou no quarto nessa hora e desabei. Contei a ele, pedi desculpas pelo choro na noite de Natal e ele: “Mãe, essa noite está toda estranha”. Dois dias antes, comemoramos o aniversário dele, e foi um dos dias mais felizes de nossas vidas, um dia de felicidade possível - pós-pandemia e perda do avô.
A festa do Francisco
Eu tenho endometriose, um tipo raro, que irradia para o pulmão - o que, a cada menstruação, me fazia ter dores terríveis. Numa delas, quase desmaiei com falta de ar, fui levada às pressas à emergência, fiz um raio-x, mas o médico de plantão não detectou nada. Eu tinha 19 anos. Hoje, escrevo com 48. Dali em diante, foram inúmeras consultas com vários ginecologistas e o que eu mais ouvia era: “devem ser gases”, “toma um chazinho que passa”, “descansa porque você está mais nervosa que sentindo dor”.
Entre a noite de Natal e hoje de manhã, revivi esses momentos todos lendo Constelações, de Sinéad Gleeson (ed. Relicário) autora irlandesa que esteve na Flip e que escreve sobre o corpo, o seu corpo de mulher tantas vezes doente, tantas vezes internado e sujeito a omissões e violências que só nós mulheres enfrentamos. Justamente por ser o que somos.
Quem me deu a dica foi a jornalista Bárbara Bom Angelo, a Babi, que mediou um encontro com a autora e sua tradutora no Brasil, Maria Rita Drumond Viana, em Paraty. Quando recomendou o livro, Babi comentou que tinha se identificado, entre outras coisas, porque tinha “endometriose”. Foi a deixa.
Minha endometriose provocava pneumotórax e nós, eu e mamãe, descobrimos isso por acaso, numa consulta de rotina com o pneumologista. Fui no médico num dia e marquei o exame para o sábado seguinte, dia de folga no trabalho (por que a gente tem tanto medo de ficar doente, né?). Ligaram da clínica e pediram para minha mãe ir lá. Recomendação explícita de 1) Não sair da cama até falar com meu médico; 2) Ir para o hospital caso a minha dor e falta de ar aumentasse muito.
Foram muitas idas e vindas, pois o médico e depois o cirurgião ao qual fui encaminhada não acreditavam no que eu dizia. “Eu só tenho essa dor quando menstruo”. Fiz inúmeros exames de raios-x para provar. Incrédulo, o cirurgião, que era um respeitado pneumologista da UFF e de hospitais públicos de Niterói, passou a pesquisar meu caso e disse que era raríssimo. Decidimos operar e, aos 20 e poucos anos, fazendo faculdade, trabalhando, procurando estágio, sofrendo com relações amorosas instáveis, próprias da juventude, e me vendo impedida de viver como todos os colegas, sem restrições. Dureza.
Entre os textos de Sinéad, decidi finalmente ler Sobre estar doente, de Virginia Woolf, que por coincidência, também tem as mãos da Maria Rita na tradução, junto com a Ana Carolina Mesquita. Virginia diz que na língua inglesa não há palavras para descrever o estado doentio. Escritoras e escritores também não se dedicaram a criar romances nesse sentido. Daí que, segundo ela, os ingleses podiam curtir uma dor de cotovelo citando Shakespeare, mas jamais conseguiam descrever uma dor de cabeça.
Voltei à coletânea irlandesa. Num dos textos mais pungentes, a autora nomeia os tipos de dor por que passou, e foram várias. Em verso e prosa, dá nome aos momentos de desespero, jamais captados por médicos, parentes, amigos, companheiro. A dor é só nossa. Assim como é nossa a experiência de parir, de amamentar, de criar um filho, de sentir medo de morrer, não por medo de perder a nossa vida, mas pela possibilidade de deixar um órfão no mundo.
“Miserável, enlouquecedora, exaustiva, sufocante, agullhada, perfurante, fina, cortante”. Esses são alguns adjetivos para descrever suas dores, em idas e vindas a hospitais, desde novinha, para tratar doença dos ossos, câncer, quedas, colocação de prótese no quadril. Não é um texto difícil de ler, pois é tudo tão corajoso, sincero e pontuado de referências históricas (ao seu país), culturais e literárias, e escrito por alguém com fé na arte.
Também não tenho religião, assim como ela, como meu sogro. Mas também, como os dois, sou movida pelo texto, pela música, pelo cinema. Sinto saudade de tratar com ele das minhas dores, mas sinto mais falta ainda de contar como foi meu ano de leituras, da descoberta da língua italiana, dos encontros no clube que ele adoraria ter participado. Aliás, no clube de leituras italianas tem só um homem. Um senhor apaixonado pela Calábria, pelo cinema e pela literatura. Médico também.
Vista da sala de triagem do hospital, 23 de dezembro de 2023
Depois da comemoração do aniversário do meu filho, fui ao hospital Samaritano. Todas as minhas energias se concentraram até aquele dia, depois caí em prostração, fiquei sem voz e, para não passar a virada do ano mal, procurei ajuda médica. A plantonista pediu dois raios-x, um deles de pulmão. Lá fui eu para a sala gelada, pela milionésima vez (não conheço ninguém que tenha feito mais raios-x de pulmão que eu, minha gente).
Abre chapa, bate chapa, enche o peito, solta o ar, vira de lado, bota a mão na cintura. Sentada, esperando a liberação pelo técnico, chorei. Foi nesse hospital que meu sogro faleceu. Foi ali que corri quando tive suspeita de Covid, em abril de 2020. Foi em corredores e salas como aquelas que passei os últimos dez anos da vida do meu pai, que faleceu depois de lutar, sem chances, contra a diabetes. Mas, de novo, a literatura me salvou. No mesmo dia, decidi que ia ler O que é meu, de José Henrique Bortoluci, o livro super elogiado que eu tinha separado para ler e não tinha tido tempo.
Numa mesa que mediei este ano na Bienal do Livro do Rio, ouvi o escritor e ensaísta Felipe Charbel contar que seu livro, Saia da frente do meu sol, era o único tipo de literatura que sabia fazer. Meio biografia, meio ensaio, retrato de uma época. Bortoluci escreveu sobre o seu pai, o caminhoneiro Didi; Charbel, sobre o tio, um solteirão convicto, boêmio e solitário. Ambos traçam instantâneos de época, a partir da história de pessoas comuns.
O livro de Bortoluci me tocou profundamente por ser ele descendente de italiano (me vi escrevendo a vida da família da minha mãe, pobre, branca, italiana, sem muitas margens para mudar de classe) e pela descrição do relacionamento com o pai. Assim como Annie Ernaux em O lugar, ele também descreve sobre o distanciamento que experimentamos quando saímos de casa para estudar e nem bem nos identificamos com o “novo mundo” lá fora, nem bem nos sentimos mais em casa quando voltamos. Isso até a maturidade, quando nos reaproximamos através da comida, da aproximação pelo tempo e pelas memórias do vivido. Temos nós a obrigação de fazer as pontes, de ouvir, de decifrar a letra, de tentar prolongar a vida deles. Essa última, tarefa impossível, infelizmente.
Quero muito ler esse da Sinéad, mas confesso que temo a identificação, rs. Indico "A doença como metáfora", da Susan Sontag. Ainda não li esse ensaio da Virginia Woolf.
"O que é meu" foi uma das minhas leituras do ano. Maravilhoso.