Você teve de ir ao banco — não se podia resolver o assunto pelo aplicativo, infelizmente. Tem uma fila enorme, você pega sua fichinha e se senta, jogando-se na cadeira. Começa a balançar as pernas, enquanto olha ao redor. Acha um pôster e o lê por inteiro, mesmo não tendo interesse algum nele. Sente-se irritado e sonolento; percebe a estranheza: está sem energia e ainda assim inquieto, agitado. Mas, subitamente, se lembra que está com o celular (surpreende-se que tenha esquecido); sente um alívio, finalmente corpo e mente relaxam, enquanto você maratona uma enxurrada de Reels — feita especialmente para você.
Uma crise foi abortada. Você eliminou uma sensação desagradável — o tédio—, e que bom… Mas e se o tédio estivesse te mostrando algo?
O Desejo por desejos
O tédio é um fenômeno abrangente e multifacetado; o que possibilita diversas definições, tipologias e explicações. É impossível falar de tudo aqui, mas já pontuo algo que percebi nas diversas leituras: a maioria das supostas discordâncias surge de problemas de terminologia, ou seja, de uma falha de comunicação: a principal causa de discordância humana! Acabamos por usar o termo tédio (boredom) para nos referirmos a coisas completamente diferentes e depois nos assustamos com os calorosos e surdos embates...
Pela psicologia, o tédio costuma ser definido como uma condição que produz sentimentos de se estar restrito ou confinado por alguma circunstância inevitável e desagradavelmente previsível e, por causo disso, um sentimento simultâneo de inquietação e de cansaço, além de um distanciamento do ambiente e do fluxo normal do tempo. A definição de Tolstoy em Anna Karenina é "o desejo por desejos". Em "Out of My Skull", os psicólogos Eastwood e Danckert definem o tédio como o sentimento desconfortável de "querer fazer algo, mas não querer fazer nada".
De acordo com teorias psicológicas modernas, “o tédio é tanto um estado de alta quanto de baixa excitação”1. É uma sonolência com inquietação (restlessness) ou agitação. Nota-se essa peculiar combinação de características destoantes; o tédio, neste sentido, é quase um paradoxo. Não é só uma emoção, mas um processo cognitivo contínuo no qual desejamos envolver nossas mentes, mas nada parece satisfazer. Sentimos também que o tempo não passa; arrasta-se penosamente — em alemão, tédio é Langeweile: lang(longo)+weile(tempo).
O tédio... Pensar sem que se pense, com o cansaço de pensar; sentir sem que se sinta, com a angústia de sentir; não querer sem que se não queira, com a náusea de não querer(…) Há um isolamento de nós em nós mesmos, mas um isolamento onde o que separa está estagnado como nós, água suja cercando o nosso desentendimento.
O tédio... Sofrer sem sofrimento, querer sem vontade, pensar sem raciocínio... É como a possessão por um demônio negativo, um embruxamento por coisa nenhuma.
Fernando Pessoa, O Livro do Desassossego.
O Tédio, como aqui definido, é a combinação estranha de letargia e inquietação, de querer sem vontade, de desejo por desejos; o que o distingue da frustração (um desejo específico foi frustrado, e há inquietação) e da apatia ( não há desejo algum, e há somente letargia). O tédio é um conundrum (“dilema”). É semelhante ao fenômeno aflitivo de um nome estar “na ponta da língua”2. Há um desejo, muitas vezes bastante forte, de se envolver em uma atividade mais significativa e satisfatória — mas misteriosa, pois nada que se imagina parece envolvente.
“Não é exato dizer que o tédio tem origem no ambiente ou em nós. É ambos, ou talvez mais precisamente, nenhum dos dois. O tédio surge da maneira como nos conectamos com o mundo.”
Out of My Skull: The Psychology of Boredom. John D. Eastwood, James Danckert.
Não é propriamente a ação repetitiva nem o trabalho monótono que causam o tédio: é a percepção de ausência de sentido e de envolvimento. O mundo do tédio é, de certa forma, não o nosso mundo; não é o mundo que está em consonância com nossos projetos e desejos. “O vácuo existencial se manifesta principalmente em um estado de tédio”, afirmou Viktor Frankl. Sem dúvidas, o tédio nos faz sentir uma perda de valor, de significado ou sentido. Nossa situação atual não nos atrai; não nos sentimos compelidos a nos envolver com ela. A realidade parece não apenas desinteressante, mas também distante e estranha.