24.05
Acho que agora eu entendi tudo.
Se o livro é “urgente”, ele também é “importante”, ou seja, ele aborda “questões” que, também elas, são “importantes”. Em geral, quando o livro é “urgente”, ele é “urgente” na maneira como aborda (ou “ataca”) (ou “trata”) “questões” assim “importantes”.
Mas as expressões são intercambiáveis: é perfeitamente possível que um livro seja “importante” por atacar (ou “abordar”) “questões” assim “urgentes”, ou por abordar (ou “atacar”) essa ou aquela “questão” com toda a “urgência” que ela (“questão”) “exige”.
Não raro, a “urgência” com que uma “questão” assim “importante” é tratada (ou “abordada”) (ou “atacada”) também diz respeito à “crueza” desse mesmo tratamento (ou dessa mesma “abordagem”) (melhor não usar “ataque” aqui), sendo a “crueza” diretamente proporcional à “coragem” do(a) autor(a) na forma como aborda a supramencionada (e “importante”) “questão”.
Voltarei à “crueza” daqui a pouco. Agora, quero falar um pouco dos(as) autores(as).
Os(as) autores(as) são muito “corajosos”, “ousados” e “inventivos”. Eles(as) têm “vozes” assim muito “poderosas” e “potentes”, e suas “vozes” são sempre “únicas” (mas também “generosas”) e “atravessadas” pelas “tensões” do “real”.
Ah, sim: o “real”.
O “real” é “fragmentado” ou até “estilhaçado” (há muitas “tensões”), de tal forma que as “vozes” dos(as) autores(as) também são “fragmentadas” ou “estilhaçadas”, pois os(as) autores(as) “trafegam” pelo “real”. Não obstante seu “caráter fragmentário” ou seu “estilhaçamento”, o “real” é “trafegável”. Ou talvez “trafegáveis” sejam as “veredas da ficção” que “apontam” para o “real”. Mas, nesse “jogo” entre o “real” e a “ficção”, “o real sempre ganha fácil”, ainda que a ficção seja “importante” por (ou para) nos “ressituar” no “mundo” (que, por sua vez, é “real”, mas pode ser “ilusório”; depende).
E há o “corpo”, claro.
Há sempre o “corpo”, e ele “pulsa” com bastante “intensidade” nas páginas da “obra” (onde mais?), dada a “urgência” desta (“obra”) e das “questões” que ela (“obra”) “atravessa”. Sim, não nos esqueçamos de que a “obra” não só aborda, ataca, trata ou “endereça” (tinha me esquecido dessa) as tais “questões”, não, a “obra” também “atravessa” as tais “questões”. Melhor ainda: as “questões” é que são “atravessadas” pela “obra” ou (intercambialidade) a “obra” é que é “atravessada” pelas questões.
Tudo é “poroso”. A “porosidade” também é muito “importante”. E tudo é “líquido”, a começar pela “modernidade” e incluindo as “relações”. Que também são “fluídas”, a exemplo dos “gêneros”.
Mas eu falava da “crueza”.
Claro, por mais “incisiva” que seja, a “crueza” nem sempre é “imprescindível”, pois há também abordagens “sutis” (mas igualmente “poderosas” e/ou “potentes”) de “temas delicados”. A “sutileza” pode ser uma forma “madura” de “enfrentar” aquelas “questões” que, como todos sabemos, dada a sua “urgência”, são muito “importantes”.
Às vezes, há um “acerto de contas” com “questões” que não são apenas “importantes”, mas também “estruturais”.
E, sendo “estruturais”, as “questões” são ainda mais “urgentes”, e elas são tão “urgentes” por “sublinhar” (ou “devassar”) “tensões” que, por sua vez, são ou se tornaram “insustentáveis”, “ressignificando” (por exemplo) as “relações” dos nossos “corpos” com o “outro”, com o “mundo” e/ou com a “história” neles “inscrita” (ou “marcada”), pois o “corpo” é sempre “político”.
Eu ainda não falei das “fraturas”.
Para começo de conversa, “fraturas” são sempre “dolorosas” e “traumáticas”. E, sejam tais “fraturas” identificadas como “sociais” ou “existenciais” (e uma coisa está sempre ligada à outra), importa a forma “potente” com que elas (“fraturas”) são “expostas”, pois as melhores “fraturas”, como todos sabemos, são as “fraturas expostas”.
E haja “coragem” para lidar — de forma “crua” ou “sutil”, mas sempre “poderosa” e “potente” — com tais “feridas”, “fraturas”, “traumas”, “atravessamentos”, “tensões” e “urgências”, abordando (ou “endereçando”) “questões” tão “importantes”.
Sim, haja “coragem”.
******
“Wiretapping the Oval Office” é um ensaio de Gore Vidal originalmente publicado em “The Nation” (27.09.1999). Como o título indica, é sobre a mania de alguns presidentes norte-americanos de grampear o Salão Oval da Casa Branca. Para quem não sabe (ou se esqueceu das peripécias de Bill Clinton com um charuto e a estagiária, por exemplo), o Salão Oval é o gabinete do POTUS.
Segundo Vidal, o primeiro a recorrer ao grampo foi Franklin Delano Roosevelt, o bom, velho e rangente FDR, célebre pelo New Deal, pelos quatro mandatos (morreu no começo do derradeiro, que azar) e também por forçar o ataque japonês a Pearl Harbor (até então, a maioria dos norte-americanos era contrária à entrada do país na Segunda Guerra).
Depois, quase todos fizeram o mesmo (isto é, grampearam o Salão Oval, não forçaram os japoneses a atacar Pearl Harbor), incluindo a outra sigla mais famosa, JFK, que era inteligentemente monossilábico nas reuniões que gravava, deixando que os interlocutores — como o general Curtis “bomb ’em back to the Stone Age” LeMay — falassem pelos cotovelos e se enrolassem. A propósito, e isso não é novidade para ninguém, LeMay era tão insano que serviu de inspiração para dois generais em “Dr. Fantástico”, de Stanley Kubrick: o paranoico Ripper (Sterling Hayden) e o alegre Turgidson (George C. Scott).
Robert McNamara diz coisas muito vívidas a respeito de LeMay em “Sob a névoa da guerra”, documentário de Errol Morris, assim como todo mundo com alguma coisa na cabeça diz coisas muito, muito bacanas sobre o próprio McNamara em, bom, um montão de lugares. Em Tóquio, por exemplo. E em Dresden. Ou na antiga Saigon. E aqui na Mooca (que ele e LeMay não bombardearam, sublinhe-se).
Richard Nixon, como é de conhecimento público, também proporcionou gravações pornográficas (no sentido figurado), até porque, à diferença de JFK, não calava a boca e ordenava subornos, arrombamentos, intimidações de testemunhas, interferências em investigações federais e até mesmo a criação de uma ABIN CIA paralela (os “encanadores”, cujo trabalho seria “consertar vazamentos”) (os encanadores brasileiros seriam Washington & Jefferson). Segundo Vidal, as fitas mostram que, embora Nixon apresente “habilidades políticas intermitentes”, ele “não parece ter nenhuma mente consciente”.
É engraçada a cena de “Nixon”, de Oliver Stone, em que Tricky Dick, embriagado e sozinho, ouve uma dessas gravações e resmunga algo como: “Eu não disse isso. Eu jamais diria uma coisa dessas”. E “Nixon” não é Nixon, óbvio que não, mas é divertido pacas.
Jimmy Carter não grampeou o Salão Oval. Carter, aliás, não deve ter grampeado nada na vida. Em todos os sentidos. Como escreve Vidal, ele foi um péssimo presidente por causa de sua cabeça “convergente” de engenheiro, inútil em um trabalho que requer um nível de “divergência quase surreal”. Vidal foi gentil nessa. Carter foi um desastre absoluto, além do pior tipo de político religioso: aquele que realmente acredita e não está apenas fingindo e ladainhando frases feitas para angariar apoio. Ironicamente, a Revolução Iraniana aconteceu bem debaixo das débeis fuças dele.
Voltando à alvorada dos grampos, o engraçado é que o sucessor (e ex-vice) de Roosevelt, Harry S. Truman, dizia que FDR “mentia” muito. De fato, nota Vidal, “presidentes, quando não estão mentindo descaradamente, sentem-se obrigados a esconder a verdade na maior parte do tempo. Isso se chama política; quando um Presidente mente com sucesso, ele é chamado de estadista”.
“Wiretapping” está na antologia “The last empire - essays 1992-2000”, a exemplo de “Rabbit’s own burrow”, no qual, fiel ao próprio nome, (Gore!) Vidal escorna e dessangra o pobre John Updike. Eu preciso dizer uma coisa: o reacionarismo, a prolixidade e a pouca inteligência de Updike são lendários, mas ler “Coelho corre” na idade certa (ali pelos 16 anos) não tem preço. É muito melhor do que qualquer coisa que Jonathan Franzen tenha escrito (o que não é difícil, eu sei), entre outras razões porque é um livrinho WASP safado e perverso (vide o destino da filha recém-nascida do protagonista, para começo de conversa). Sim, a safadeza e a perversidade podem até salvar alguns esforços literários, mesmo em se tratando de autores menores e/ou medíocres. Updike era capaz, por exemplo, de propiciar grandes momentos de “bad sex writing” — vide o lance do balde no involuntariamente engraçado “Gertrudes e Cláudio” (Ofélia se afogou por/em menos) ou a felação (creio que o termo latino seja “boquete”) em “Coelho corre”.
Aliás, com relação ao sexo, há aquela fala impagável de Updike em uma entrevista à Paris Review: “Vamos tirar o coito do armário e do altar e colocá-lo no continuum do comportamento humano”. Uau. É como se Sheldon Cooper fosse um romancista.
Em “Rabbit’s own burrow”, Vidal mira o reacionarismo de Updike e seu (talvez) produto mais insuportável, o horrendo “Na beleza dos lírios” — que, além de longo, nada tem de divertido. Sobre o reacionarismo: Updike apoiou a Guerra do Vietnã porque não seria capaz de “questionar um presidente”.
Rapaz.
Vidal lembra que Updike “apoia o presidente, qualquer presidente, certo ou errado, porque numa época como essa ‘é um dever do cidadão comum prender a respiração e esperar pelo melhor’”. E, nesse espírito, Updike se coloca ao lado dos tais cidadãos “comuns” contra os “privilegiados”. Em uma carta ao New York Times, ele cita “os professores de Cambridge e os advogados de Manhattan e seus filhos tocadores de guitarra (…), os membros privilegiados de uma nação privilegiada (…) cheia de desdém estético (sic) por seus próprios defensores”. Ao que Vidal retruca: em algum momento que ignoramos, “o vietcongue deve ter bombardeado San Diego”.
Meu desdém estético é infinito: eu respiro fundo e sempre espero pelo pior. (Nunca me decepciono.)