Fabricio Muller
“Comme ils disent”, de Charles Aznavour
A canção perfeita existe
Ele mora sozinho com a mãe, num velho apartamento na Rua Sarasate. Sua companhia é uma tartaruga, dois canários e uma gata. Para deixar sua mãe descansar, ele frequentemente faz compras e a cozinha. Ele arruma, lava e seca.
Ele não tem medo do trabalho: é um pouco decorador e estilista! Mas seu trabalho verdadeiro é à noite, que ele exerce travestido de mulher, ele é artista! Ele tem um número muito especial, em que termina completamente nu, depois do strip-tease. Nestes momentos os machos não acreditam no que veem: “nossa, ele é um homem!”, como eles dizem.
Aí pelas três da manhã ele vai lanchar com os amigos de todos os sexos! E em um bar qualquer, ele e sua turma se divertem de verdade, e sem complexos! Eles falam verdades ácidas sobre as pessoas do lugar, mas fazem isso com humor. Nas madrugadas alguns retardados tentam imitar seus amigos e ele, para tentar fazer sucesso em suas mesas, mas só se cobrem de ridículo. As piadas e as provocações deixam-no frio, porque “ele é um homem”, como eles dizem.
Quando o dia amanhece, ele volta para seu lugar de solidão, como um pobre palhaço infeliz e esgotado. Ele se deita, mas não dorme, pensa nos seus amores insignificantes e sem alegria. Ele pensa naquele garoto belo como um deus, que sem fazer nada colocou fogo na sua memória. A sua boca jamais ousará lhe revelar seu doce segredo, seu drama delicado: afinal de contas, o objeto de todos os seus tormentos passa a maior parte do tempo em camas de mulheres.
Na verdade, ninguém tem direito de julgá-lo, de culpá-lo, e ele deixa isso bem claro: porque a natureza é a única responsável se “ele é um homem”, como eles dizem!
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Se trocar a terceira pela primeira pessoa no texto acima (por exemplo: no início, ler “eu moro sozinho com a minha mãe”), tem-se quase uma tradução de “Comme ils disent” (como eles dizem), canção do grande cantor francês Charles Aznavour. ´
A música foi lançada em 1972. Depois de pronta, o chansonnier - heterossexual e que na época tinha cinco filhos de três casamentos - foi testá-la diante de amigos homossexuais. Segundo o próprio cantor, a canção foi recebida com um frio generalizado na pequena plateia. Perguntaram-lhe: “quem vai cantar esta música?”. “Eu mesmo”, respondeu Aznavour. Novo silêncio no grupo.
Os assessores do cantor na época lhe aconselharam a não gravá-la, para não correr o risco de prejudicar sua imagem. Mas ele decidiu correr o risco porque essa questão era muito importante para ele, e merecia uma posição.
Na época, o jornal “Le Monde” criticou a canção. A crítica Claude Sassaute comentou acidamente:
“esta evocação do homossexual que substitui a mãe na cozinha, na lavanderia, na máquina de lavar, que esconde seu desespero, seu ‘doce segredo’, sua paixão ridícula por um conquistador heterossexual, e é uma pequena trabalhadora apaixonada pelo chefe, (...) é boa para os (inofensivos) Frères Jacques (quarteto vocal tradicional francês).”
Mas o sucesso de “Comme ils disent” foi praticamente imediato, não só entre o público em geral como no meio homossexual – e vários números de travestis usavam esta canção de fundo. Até hoje raramente é lançada uma coletânea das melhores canções de Aznavour sem ela.
Quanto a mim, desde a primeira vez que a ouvi fiquei impressionado com a belíssima melodia, a incrível expressividade do chansonnier, com a delicadeza da letra e com a maneira como ele tratava sem ironias o mundo homossexual – foi a primeira canção francesa de sucesso, aliás, a tratar a homossexualidade com seriedade.
Assim que Aznavour faleceu, em 2018, o canal France Info entrevistou um senhor homossexual chamado David, com 48 anos na época, que declarou que “Comme ils disent” o ajudou, durante toda a sua vida, a aceitar-se como era - porque, afinal de contas, ser homossexual não era culpa sua. “Ninguém, até o início dos anos 1970, tinha ousado dizer uma coisa dessas”, complementou.
(fonte da foto: Wikipédia em francês)