Retratos Fantasmas em Lisboa
O diretor de Bacurau e Aquarius faz uma ode ao cinema e à sua cidade natal
Muito se tem falado em Oppenheimer e Barbie, mas caso você não esteja interessado em desenterrar a bomba atômica ou relembrar brinquedos que marcaram a sua infância, a edição de hoje oferece um convite para um passeio com um dos grandes cineastas do nosso país.
Há algumas semanas, tive o privilégio de comparecer à estreia de “Retratos Fantasmas” (2023), o mais recente filme de Kleber Mendonça Filho, em Lisboa. Presente na sessão, o diretor de “Bacurau” (2019) e “Aquarius” (2016) conseguiu lotar o tradicional cinema São Jorge, localizado em uma das principais avenidas da cidade, com 854 pessoas.
Este documentário, que teve sua estreia mundial na Seleção Oficial da 76ª edição do Festival de Cannes, é produzido por Emilie Lesclaux (CinemaScópio) e co-produzida pela Vitrine Filmes. O projeto, iniciado há sete anos, com meticulosa pesquisa e montagem, traz Kleber explorando uma miscelânea de imagens de arquivo, gravações de áudio e seu acervo pessoal de fitas VHS, Betacam, Hi8, MiniDV e vídeos de celulares, todos para compor a saudosa obra de 93 minutos.
Algumas cenas foram capturadas há mais de três décadas, quando o próprio diretor ainda era um estudante universitário. Acredito que a longa gestação de “Retratos Fantasmas” poderá ser recompensada com o merecido reconhecimento da crítica em festivais internacionais e nacionais.
Segundo a descrição do IMDB, o filme é:
“uma jornada multidimensional através do tempo, som, arquitetura e cinematografia”.
Entretanto, a breve sinopse não faz justiça ao que considero o coração e a essência do projeto: uma declaração de amor do diretor pernambucano à sua cidade natal e aos majestosos cinemas de rua — verdadeiros palacetes que agora desapareceram e tornaram-se lembranças.
Como se estivesse lendo as páginas de um diário pessoal, Kleber nos convida para um passeio histórico, rememorando a era dourada de Recife, quando a cidade acolhia estrelas hollywoodianas em suas icônicas praias e glamorosas salas de cinema. Acompanhamos também o declínio, abandono e subsequente gentrificação de uma região em constante transformação.
Os cinemas — outrora grandiosas estruturas arquitetônicas — agora se transformam em literalmente retratos fantasmas. E quando não estão sendo devorados por cupins, reencarnam na forma de lojas de departamento, shoppings ou igrejas evangélicas.
Em meio à avalanche de urbanização e modernização, Recife, cheirando a "frutas e mijo”, ocupa o papel de protagonista absoluta do filme. Os cinemas locais emergem como personagens, entrando e saindo de cena conforme o narrador — o próprio Kleber — num tom sereno de conversa, compartilha suas memórias e aventuras, resgatadas por meio de gravações pessoais, fotografias e notícias de arquivo.
Dessa forma, o diretor nos oferece um ensaio intimista, ou, como diria Deleuze “perceptos”: um conjunto de emoções e sensações herdadas que transcendem o individual e, por isso, demandam expressão por meio da arte, como a escrita ou o cinema.
Aqui, a arte nostálgica de um tempo perdido, da inviabilidade do que já foi, é permeada de momentos satíricos, narrados pela voz mansa e irônica do diretor. O crítico literário e professor Luiz Costa Lima afirma que “o tempo é a atmosfera que envolve a melancolia”. Além das lembranças do que aconteceu, “Retratos Fantasmas” também configura um ambiente melancólico, carente e sensível. É a saudade do que poderia ainda ter sido.
Dividido em três blocos aparentemente desconexos: o apartamento da família onde Kleber cresceu, os cinemas de Recife e os templos evangélicos, o documentário entrelaça tematicamente esses três segmentos.
Na primeira parte, tudo acontece dentro e ao redor do “Apartamento de Setúbal” — uma obsessão do diretor pelo ambiente onde cresceu e que, assim como a sua Recife, também sofreu profundas mudanças. Kleber brinca com os elementos reais e ficcionais do apartamento, ao inserir cenas de seus filmes que foram gravadas nesse mesmo espaço.
Sentimos a paixão do diretor ao contemplar imagens fascinantes do jovem Kleber brincando com a câmera em seu próprio apartamento. Vislumbramos o seu processo criativo ao acompanhar a produção de vídeos caseiros e do autodidatismo cinematográfico. O diretor explorava metodicamente cada canto, todos os espaços daquela casa que servia como cenário para seus filmes e que estimulava a sua curiosidade. Estamos diante da pura cinefilia de um cineasta em processo de aprendizado e amadurecimento.
Na segunda e terceira parte, o diretor revisita os imponentes cinemas de rua no centro de Recife, lugares que frequentou assiduamente e que hoje fecharam as portas, cedendo lugar a centros comerciais, lojas de eletrodomésticos ou igrejas evangélicas.
Para o crítico Fernão Pessoa Ramos, o cinema, diferente de outras imagens em movimento, é uma arte que desenvolve-se ao longo do tempo, mas que nunca pode parar. A experiência de assistir filmes nas salas e sessões escuras é como observar trens em movimentos ou cachoeiras que não se esgotam. Assim como não se pode parar um trem ou uma queda d’água, o espectador, imerso na projeção, também não consegue escapar do filme. A única direção possível é a do final que já está dado a cada instante.
Apesar dos trágicos desfechos dos cinemas de Recife, Kleber demonstra esperança na experiência coletiva do cinema. Sentimos a gratidão e a paixão que o diretor expressa pelos espaços que o moldaram como cineasta. A casa da família e os lugares que projetavam filmes em sua infância e juventude ainda assombram o diretor, mas a sinceridade do artista agora encontra novos corpos para ajudá-lo a purgar os fantasmas de um passado distante. Corpos que ainda frequentam as salas escuras dos cinemas.
Na minha singela opinião de não crítico, considero “O Som ao Redor” (2012) a melhor obra de Kleber, mas confesso que “Retratos Fantasmas” (2023) bateu fundo. A sessão acabou, mas o filme continua comigo. E o cinema tem disso… é uma arte que insiste em não morrer.
Por fim, o cinema é massa.
Fade out --
F.S.