Povos indígenas, apagamento e Ditadura Militar
Desde que comecei a aprofundar minhas pesquisas sobre Ditadura Militar tem uma coisa que me intriga demais: o quão branca e masculina é a memória que se tem sobre esse período. Já percebeu que na maioria das narrativas sobre esse período quase não tem gente negra, não tem lgbt’s, não têm indígenas? E nem vou entrar no mérito de como as mulheres são retratadas porque isso é papo pra uma outra news que virá em breve.
Esse apagamento tem um prejuízo grave: a injustiça e a manutenção de uma perspectiva que só favorece opressores - no caso aqui, todos os envolvidos com a Ditadura Militar. Você consegue lembrar de alguma liderança indígena ou de algum indígena que esteve presente durante a Ditadura? Quantas vezes te falaram sobre as violações de direitos humanos perpetradas contra essa população?
Em contrapartida, se for pra você falar sobre homens brancos que lutaram contra a Ditadura (ou até que lutaram por ela) a lista não vai ser pequena. E isso tem a ver justamente com esse apagamento e com essa memória que exclui outros grupos que também resistiram, que também foram vítimas da Ditadura Militar. Memória não é somente sobre lembrança.
Memória é campo de disputa, controle social, é sobre corpos e lugares também. E onde estão os indígenas nesse campo da Ditadura Militar? Estereotipados e silenciados, tratados como seres tutelados enquanto seus direitos foram violados, seus territórios entregues a latifundiários, dentre outras coisas. É justo os indígenas terem esse espaço na memória da Ditadura Militar?
Precisamos conversar sobre o Reformatório Krenak
Um dos grandes marcos da Ditadura Militar é o AI-5 (Ato Institucional nº 05) pois ele tornou a Ditadura ainda mais poderosa, opressora, revogou vários direitos dos cidadãos e isso interferiu na vida dos povos indígenas também. Pois com o AI-5, a política indigenista representada pela Funai se tornou ainda mais opressora. No relatório final da Comissão Nacional da Verdade tem um capítulo que traz todas as investigações da CNV sobre as violências sofridas pelos indígenas durante a Ditadura e isso inclui o Reformatório Krenak.
Localizado em Minas Gerais, no território do povo Krenak, esse reformatório foi uma prisão legal e criada justamente para substituir uma prisão ilegal que existia em São Paulo antes da criação da Funai. Para o Reformatório Krenak eram levados indígenas que se opunham à Funai ou que cobravam ações de proteção e justiça. Num dos documentos analisados pela CNV, o Reformatório Krenak é comparado a um campo de concentração por suas condições desumanas. O depoimento a seguir é de Bonifácio Duarte, índio Guarani-Kaiowa que foi detido nesse reformatório:
Amarravam a gente no tronco, muito apertado. Quando eu caía no sorteio prá ir apanhar, passava uma erva no corpo, prá aguentar mais. Tinha outros que eles amarravam com corda de cabeça prá baixo. A gente acordava e via aquela pessoa morta que não aguentava ficar amarrada daquele jeito. (Prá não receber o castigo...) a gente tinha que fazer o serviço bem rápido. Depois de seis meses lá, chegou o Teodoro, o pai e a mãe dele presos. A gente tinha medo. Os outros apanharam mais pesado que eu. Derrubavam no chão.
Não se sabe ao certo quantos indígenas foram presos, torturados e mortos no Reformatório Krenak. Há um levantamento feito por José Gabriel Silveira Correa entre 1969 e 1979 que aponta os povos que passaram por lá. Segundo esse relatório, membros dos povos Urubu, Campa, Xavante, Xakriabá, Tupinikim, Sateré-Mawé, Javaé foram detidos no Reformatório. Além deles, José registrou também:
22 Karajá
17 Terena
13 Maxacali
11 Pataxó
9 Krenak
8 Kadiweu
8 Xerente
6 Kaiowá
4 Bororo
3 Krahô
3 Guarani
2 Pankararu,
2 Guajajara
2 Canela
2 Fulniô
1 Kaingang
Esses números não refletem a totalidade pois vários indígenas relataram também que seus familiares presos foram levados para um lugar chamado A Ilha das Cobras - localizada no Rio de Janeiro e conhecida como uma das ilhas mais perigosas do país devido a alta concentração de cobras no local - e que permanecem desaparecidos até os dias atuais.
A política indigenista da Ditadura tinha o objetivo de silenciar os povos indígenas, entregar seus territórios aos latifundiários enquanto mantinha a aparência para as autoridades internacionais de que no Brasil tudo estava bem. A ausência dos indígenas nas narrativas de memória da Ditadura Militar perpetua essa política de terror e de silenciamento até os dias atuais.
A Assembleia dos Chefes Indígenas, CNV e reparações
Diante das investidas da Funai e dos demais órgãos de repressão, ao longo dos anos foram realizadas Assembleias dos Chefes Indígenas para articular a resistência. Para deslocamento, os indígenas necessitavam de portarias que eram expedidas pela FUNAI. E não é preciso dizer que nem sempre essas portarias eram liberadas, certo? Afinal, indígenas são indivíduos tutelados pelo Estado Brasileiro…
Essas assembleias aconteceram em vários estados do Brasil e ao longo dos anos enfrentaram vários percalços. Agentes à paisana foram enviados para espionar os indígenas, além de prisões arbitrárias e ações que tornavam as assembleias ilegais - como foi a assembleia que aconteceu em Roraima no ano de 1977. Foi através destas assembleias que várias denúncias de tortura, morte e desaparecimento forçado chegaram às autoridades internacionais e que foram registradas. Boa parte desses registros está no relatório final da CNV.
A CNV encerra o relatório recomendando a criação de uma Comissão Nacional Indígena da Verdade para aprofundar os estudos sobre as violações de direitos humanos sofridas pelos povos indígenas, o fortalecimento das políticas públicas voltadas para a saúde dos povos indígenas enquanto medida de reparação coletiva, dentre outras coisas. Será que teremos isso nos próximos anos?
Para conhecer mais a Dita
A Agência Pública tem uma reportagem que fala sobre o Reformatório Krenak e os impactos dessa triste experiência na memória dos indígenas. O vídeo foi feito há 8 anos atrás e traz relatos potentes de quem sobreviveu ou testemunhou o horror vivido nesse período. Confira!
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