A raiva está na base de boa parte de nossos conflitos cotidianos, mas o fato é que sabemos muito pouco sobre essa emoção tão destrutiva. O que você sabe sobre a sua raiva? E sobre a raiva das pessoas com as quais convive?
A raiva é a emoção do ataque e da violência. Quando a experimentamos, somos tomados pelo impulso de machucar (ou destruir) a pessoa ( ou objeto) que ofereceu o gatilho. Se for provocada por algum acontecimento ou situação, logo tentaremos encontrar alguém para responsabilizar e em cuja direção disparar nossa agressividade. Mas esse impulso de machucar não é sempre físico. Na verdade, na maioria das vezes, a nossa raiva é expressa por meio de agressão verbal; ou comportamental. Parar de falar com alguém, por exemplo, é uma forma comum de expressarmos a nossa raiva.
Basicamente, a raiva nada mais é do que uma reação a algum tipo de interferência incômoda ou inoportuna. Para haver raiva, é preciso haver um obstáculo. O que se passa conosco é algo mais ou menos assim: “quero te machucar porque você está no meu caminho”. Sabemos, com base em pesquisas realizadas com crianças, que a situação mais efetiva para deflagrar a raiva é a limitação dos movimentos corporais. Mesmo crianças tranquilas e pouco irritáveis reagem com agressividade quando alguém tenta imobilizá-las de alguma forma. Nesse caso, o que está em jogo é a interferência no fluxo de um movimento físico. Mas podemos entender a raiva como reação a uma interferência em qualquer tipo de percurso. Sentimos raiva quando alguém obstrui nosso caminho, seja no plano da ação concreta ou do pensamento. Também podemos sentir raiva quando alguém nos desaponta, nos contraria, nos rejeita ou simplesmente discorda de nós.
A imagem paradigmática da raiva é a de uma pessoa muito irritada, com o rosto vermelho, vociferando e partindo para cima de alguém, numa demonstração explícita de falta de autocontrole. Mas a raiva possui muitas nuances, e nem sempre se apresenta em forma de explosão. Há uma extensa gama de sentimentos raivosos, que vão desde o aborrecimento ou a indignação, até o agastamento, a zanga, e a fúria.
A regulação da violência intrínseca à experiência da raiva, seja ela verbal ou física, é função da educação. Embora, como sugere Paul Ekman, o impulso de machucar esteja universalmente presente na raiva, sua intensidade varia de acordo com o nível de educação emocional da pessoa. Por outro lado, há também algumas circunstâncias neuropsicológicas que podem diminuir ou mesmo impedir o autocontrole por parte de um indivíduo. No caso da raiva, a circunstância mais relevante é a irritabilidade. Sempre que estamos irritados por algum motivo (estresse, falta de sono, pressões cotidianas, etc), ficamos mais suscetíveis à raiva, como se procurássemos um motivo para explodir e nos aliviar. Porém, o fato é que algumas pessoas já possuem um humor naturalmente mais irritável. Para algumas, sentir raiva é quase uma segunda natureza.
Assim, se o controle da resposta da raiva representa uma luta interna para todas as pessoas, para aquelas de humor predominantemente irritável ele se torna um verdadeiro desafio. E, nessa luta interna, há ainda um grande complicador. Dependendo do contexto e da situação, a resposta violenta pode até parecer justificada. Muitas vezes, reagimos com violência a alguém que já fez algo parecido conosco, ou que costuma agir de modo que não consideramos correto. E aqui chegamos ao ponto crucial da discussão: a raiva teria alguma positividade?
Sim, assim como todas as emoções básicas, a raiva tem a sua positividade. A nossa raiva informa aos outros que algo está errado, que não estamos satisfeitos. E, inversamente, quando observamos sinais da raiva em alguém com quem estamos interagindo, podemos perceber o nosso erro e reconduzir a situação. Quando uma pessoa sente raiva, as feições mudam, o olhar torna-se mais penetrante, as mandíbulas se cerram. Do ponto de vista fisiológico, podemos dizer que ela se prepara para o ataque. Os batimentos cardíacos ficam mais acelerados, mãos e braços se precipitam para a frente. Sabe aquela situação do “dedo na cara”? Ela é efeito da raiva, uma espécie de substituto da agressão direta.
Outra função positiva da raiva seria a de corrigir eventuais injustiças. Muitas vezes, sentimos raiva por algo que está acontecendo com outra pessoa. De todo modo, mesmo em situações em que a raiva seja justificada e construtiva, ela sempre costuma trazer um custo muito alto. Crianças raivosas, que reagem às situações de interação com muita agressividade, são menos aceitas em qualquer grupo de que participem. Adultos raivosos, além de perder aceitação social, geram ressentimentos e retaliações. Mas há um domínio das relações em que a raiva costuma ser devastadora: o da família.
Esperamos que as pessoas mais próximas respeitem os nossos limites e reconheçam as nossas fragilidades. Por isso, no ambiente doméstico, tendemos a ficar mais desarmados emocionalmente. Ocorre, porém, que nossos entes queridos também esperam o mesmo de nós. E, por isso, de ambos os lados, qualquer resposta raivosa será percebida e recebida de maneira mais dolorida, com consequências no médio e no longo prazo.
Vamos tomar como exemplo um casal. Quando os dois são explosivos, a tendência é que acabem se agredindo verbalmente com frequência, tornando o ambiente muito difícil, para si próprios e para os filhos. Por outro lado, se um dos dois é mais calmo, menos dado a explosões, o risco é que essa pessoa acabe se retraindo. Percebendo-se incapaz de reagir de maneira construtiva aos sentimentos suscitados pelas explosões do outro, ela pode se fechar e acumular ressentimentos. O fato é que, para qualquer relação que se pretenda de cumplicidade, os dois cenários são tóxicos, e podem ser letais.
O teórico da emoção Richard Lazarus sugere uma técnica muito interessante para se lidar com a presença de uma pessoa explosiva na família. Ao invés de retaliar com mais raiva ou se retrair para reparar a sua autoimagem, o ideal é que a pessoa agredida tente reconhecer no comportamento do outro o resultado de uma falha grave de controle. Sim, explosões de raiva nunca são frutos de uma decisão. Ninguém explode porque quer. Por isso, a forma mais construtiva de se lidar com esse problema é partir do pressuposto de que a intenção não foi má e tentar canalizar a nossa reação para o ato em si, e não para a pessoa que o praticou.
É claro que isso não é fácil. Mas é a única forma saudável de preservar a relação com uma pessoa raivosa e explosiva. Esperar passar a crise, e fazê-la saber que a agressão não foi bem recebida, que não estamos satisfeitos com o que ela fez. Em resumo, ao invés de tentar ferir de volta, ajudar ou sugerir que a pessoa procure uma ajuda para ajustar o seu padrão de auto regulação emocional. Em casos extremos, quando as explosões são frequentes e muito desproporcionais, é preciso inclusive pensar na possibilidade da existência de algum transtorno passível de tratamento. Mas, veja bem, estamos falando aqui de agressão verbal. Dentro de casa, nenhum tipo de violência física pode ser tolerado. E também é preciso dizer que existem, sim, pessoas cruéis e sádicas, com as quais nenhuma conversa vai funcionar.
Enfim, o grande desafio de qualquer relação é encontrar o equilíbrio entre as perspectivas das pessoas envolvidas. Mas, para isso, é preciso que tenhamos uma compreensão densa do que está acontecendo conosco e com os outros. Essa série de textos sobre a vida emocional tem como objetivo ajudar você a construir essa compreensão.
No próximo, vamos conversar sobre a alegria.
Um forte abraço,
Cristiane
Seus textos são ótimos. Quero ver um livro saindo em breve! 😊