Eu me sinto atrasada. Sinto muitas coisas, mas atrasada é a sensação que tem permanecido em mim, comigo. Quando saio ou encontro com os amigos, existe sempre um momento em que seus empregos são discutidos, diversas questões que eu nem faço ideia do que se trata, tendo em vista que o meu trabalho é em casa, estudando e fazendo esse lar funcionar. Então, me sinto atrasada. Sinto que são experiências de vida que eu nunca pude acessar e nem me enxergo acessando. Quando estou em eventos do trabalho do meu namorado, pior ainda, já que existe toda uma intimidade entre esse grupo e os cônjuges são todos pais, então as conversas também acabam se direcionando para um universo que eu não tenho a mínima ideia de funcionamento, nunca quis ter filhos e nem pretendo, mas me sinto atrasada. Me sinto atrasada porque é mais um universo que não consigo acessar, me está distante.
Vejo pessoas que trabalham com a psicanálise e com a literatura, duas áreas que estão dentre as minhas maiores paixões, e me sinto atrasada. Sinto que não estudei ou estudo o suficiente, sinto que não estou me esforçando o bastante para ser criativa, lanças conteúdos interessantes e que instiguem outras pessoas. Sinto que não adianta me esforçar agora, o tempo que eu tinha já passou, agora fico presa em um limbo, o limbo do atraso. A sensação é sempre a de que eu não posso mais, não consigo mais. Todas as possibilidades voaram para longe e vou permanecer em uma inércia com a sensação de atraso sempre na minha cola.
Nunca fui uma grande estudante, sempre fui bem medíocre, para ser sincera. Na escola eu pegava recuperação em todas as disciplinas de exatas e biológicas, era um completo pavor. Via meus colegas entrando de férias enquanto eu ficava ali, atrasada, tendo que continuar estudando por mais tempo em uma tentativa de compensar o que não fiz o ano inteiro. Já na graduação, as coisas foram um pouco diferentes porque eu realmente me identifiquei e tinha curiosidade, uma sede imensa de aprendizado, mas pensar que eu estava atrasada não sumia de mim. Eu olhava todo o universo que a graduação em psicologia me permitia, a pluralidade da vida e pensava que estava muito atrasada, tive que eu mesma ir em busca de conhecer e me aprofundar no mundo da música, do cinema, dos filósofos, das artes em geral. Era realmente um universo muito novo para mim, não fui educada para isso, a minha família não tinha condição de me educar culturalmente porque estavam mais preocupados em ter o dinheiro no fim do mês para pagar as contas. Então, mais uma vez, atrasada. Atrasada e correndo freneticamente contra esse tempo que eu sentia que passava me atropelando, me sufocando.
O sentimento de estar atrasada em tudo é angustiante, eu nunca acho que conheço sobre os assuntos pelos quais me interesso. Sinto que estou sendo uma usurpadora de gostos e conhecimentos. Me sinto como uma esponja que vai retendo noções mínimas de diversas áreas, é como se não houvesse profundidade alguma no que eu sei, no que aprendo, no que retenho. Junte à sensação de atraso o pensamento de estar sendo rasa, superficial, forçada, ladra de pequenos saberes. Eu me sinto perdida. É como se a quantidade imensa de conteúdos que dizem que precisamos saber, os imensos estímulos o tempo inteiro do quanto devemos consumir, a correria insana de se mostrar, provar que sabe de algo, tudo isso me faz querer correr para bem longe. Eu quero distância, a vontade é sempre de me isolar completamente em meio ao mato e não ter contato algum com essa existência tão frenética e conturbada.
Eu já não sei se me sentir atrasada é tão ruim assim, me parece que é um pouco de correr contra a correnteza. O problema é só que acabo sendo arrastada e afogada pela mesma correnteza que tanto tento fugir. Semanalmente estou na minha análise mesmo contra minha vontade, mas sigo lá. Talvez eu precise saber um pouco mais sobre os meus atrasos na vida, sobre o meu ritmo diferente e sobre não me colocar em corridas que jamais conseguirei concluir. Estou e sou atrasada.
Parece que você arrancou uma página do meu diário e expôs aqui. Sinto tudo isso, o tempo todo, em todo lugar. hahaha que texto perfeito! obrigada por colocar aqui e compartilhar suas angústias, que são as mesmas que as minhas, mas tenho pavor em colocar no mundo.
Que bonito, Karla. Como uma pessoa que “trabalha com a psicanálise”, compartilho dessa sensação! Quando estou nos Seminários, às vezes penso: “já era pra eu saber disso!”, só que ao mesmo tempo, alcanço um alívio em aceitar que precisei entender muita coisa antes de tornar aquilo compreensível; não estava exatamente parada ou em uma marcha que me pôs atrasada (só em relação a ideias inalcançáveis, talvez, hahah).