A primeira vez que a vi, fiquei de longe a observando caminhar de grupo em grupo com uma cestinha que ela segurava com destreza na mão direita. Com a esquerda, ela cutucava as pessoas pelo ombro, apontando para os sanduíches naturais que vendia para juntar uma grana.
Ela vestia uma calça cargo preta e larga, um pouco abaixo da sua cintura, e calçava um All Star preto todo surrado. Sabe quando uma pessoa te olha e você não consegue definir se ela é invocada mesmo ou se está fazendo pose? Era essa a cara de poucos amigos que ela tinha. Usava um top justo e caminhava com passos firmes, fazendo seu cabelo balançar.
No final do século passado, quando entrei para o segundo grau ensino médio, eu tentei fazer uma jogada que não iria dar certo, mas eu ainda não sabia. Iria tentar ser outra pessoa, mais descolada e menos tímida, afinal, ninguém ali me conhecia das escolas anteriores e eu já não morava naquele bairro nobre há alguns anos.
Sentava sempre na penúltima fila e logo me misturei com uma turma que se dizia underground. Foi assim que descobri o incrível cenário Rock em Salvador, repleto de bandas fantásticas como Dois Sapos e Meio, Lisergia e a nova banda de uma menina que se chamava Pitty e vendia sanduíches naturais antes dos shows, chamada Inkoma.
Nem todo mundo que conhece Pitty hoje sabe muito bem de onde ela surgiu ou o que ela cantava antes. O seu primeiro disco solo Admirável Chip Novo estourou em todo o país com excelentes músicas — que escuto até hoje — e foi assim que ela se tornou um dos ícones do Rock e da Bahia também. Só que antes de toda essa produção e preparo para o sucesso, ela era apenas mais uma integrante de um cenário que nunca teve o destaque merecido em Salvador.
Recomendo, nem que seja por curiosidade, que separe apenas 20 minutos do seu tempo para ouvir esse álbum da Inkoma chamado Influir.
Eu nunca fui muito afeito a tietar celebridades, correr atrás, tirar fotos, pedir autógrafos, etc. Se na primeira vez que vi Pitty ela ainda não era famosa nacionalmente, já na segunda vez que me encontrei no mesmo recinto que a artista, cara a cara, ela estava no auge do sucesso do seu primeiro disco solo.
Para contar essa história vou precisar voltar um pouco atrás, mas vou deixar logo a mensagem chamativa resumindo como aconteceu para quem tem preguiça de ler ou é ansioso demais para esperar:
A segunda vez que a vi foi quando meu primo, portando uma espingarda, queixou1 Pitty.
Não me importo com o mal que assola a humanidade
Nem com o mal que assola a humanidade
Não me importo com o Papa fazendo caridade
Nem com a corrupção que tira a liberdade(Inkoma - Não me Importo)
Quando iniciei o glorioso curso de Bacharelado em Informática na Universidade Católica de Salvador (UCSal), minha nova tentativa de me adequar ao meu signo (Leão) e também de ser uma pessoa descolada, adivinhem? Sim, fracassou outra vez. Na contra capa do meu caderno, que queimei junto com outros materiais do curso assim que me formei, estava a letra da música cantada por Pitty, quando ela ainda estava na banda Inkoma. Quem a vê hoje, politicamente engajada, conseguiria associar a mesma garota que vendia sanduíches naturais e cantava essas músicas?
Em 1998, no programa Lado B da MTV, Pitty e a banda Inkoma deram uma entrevista após tocarem no festival Boom Bahia II. Durante a entrevista, ela deixou claro que estavam ali para fazer um show, não um comício político. Naqueles anos, nosso foco não era mesmo ampliar debates políticos, mas sim enfrentar as bandas e a estrutura da cidade voltada para o Axé Music.
Para quem viveu esses tempos, fica fácil entender como discursos conservadores tem se espalhado por dentro de nossas famílias e sociedade. A nostalgia de tempos mais ‘simples’ e supostamente melhores é uma isca fácil para introjetar ideias extremistas na cabeça de muitas pessoas. Naqueles tempos o correto era não se politizar, e os fatores são muitos. A gente tinha saído da ditadura e alguns anos antes sobrevivemos, sabe-se lá como, ao Plano Collor. Em Salvador, para a turma que ouvia rock ou qualquer som underground, nossos únicos inimigos eram o povo da Axé Music. E, para fechar esse parágrafo mais sério, quem é contra a família, as crianças ou a favor da corrupção? É assim que a gente perde as pessoas para a extrema direita.
Após alguns semestres de curso, fui para uma festa à fantasia na casa de um sujeito influente no meio underground de Salvador, apesar dele ser de Lauro de Freitas. Os únicos requisitos para entrar na sua casa naquela noite de sábado eram levar bebidas e estar fantasiado.
Como eu era muito tímido, já tinha uma fantasia mínima que envolvia uma camisa quadriculada e um chapéu de palha. A bebida já estava gelando e estaria tudo certo não fosse o meu primo. Ele não se contentava em armengar2 uma fantasia, ele queria produzir. Era como se ele fosse um protocosplayer daqueles tempos.
Depois de viajar 20 km de busu até o centro da cidade, na avenida 7, chegamos numa loja que a vendedora estava se recusando a vender uma roupa para ele. Isso porque era um conjunto com bermuda e camisa em uma malha igual aquelas cortinas dos anos 1990 com tema floral em vários tons multidimensionais de verde.
Depois de meu primo convencer a gerente da loja de que era aquilo mesmo que ele queria, voltamos para casa para tomar banho, nos arrumar e partir para Lauro de Freitas. A gente sabia como chegar, mas nunca como voltar. Antes de sair, meu primo pegou um chápeu daqueles que se usam para caminhar no sol, de malha, e colocou algumas folhas secas de palmeira para simular penas. Dizendo ele que era o Robin-Hood. Só que ao invés de arco e flecha, ele estava levando a espingarda, de verdade, do nosso avô.
Dois sujeitos raquiticos com bigodes ralinhos usando chápeu, fora da época junina. Um deles com uma espingarda na mão andando tranquilamente num ônibus. A arma era de chumbinho e estava quebrada, mas era igual a uma de verdade. E tudo normal, tudo certo na Bahia. Naqueles tempos em que as redes sociais como hoje ainda não existiam, a gente topava qualquer coisa para sair de casa. Beber e ouvir musica em Posto de Gasolina, ir para um Shopping apenas fazer pose e nem sequer entrar num cinema ou ir para festas duvidosas na casa de pessoas que sequer conhecíamos.
Nesse dia a festa era, guardada algumas proporções, parecida com aquelas que a gente via em filmes gringos. Onde a galera jovem se reunia pra ouvir música, beber e conversar. A fantasia de meu primo, claro, estava fazendo muito sucesso. Mais até do que as alugadas que algumas pessoas mais preguiçosas e abastadas estavam vestindo. Em determinado momento, quando estava encostado no fundo da casa, meu primo me cutucou (na costela).
— Porra, man! É Pitty ali?
— Acorde Buraco, o que Pi…
Era ela. Sentada no canto conversando com algumas pessoas conhecidas, com a mesma roupa que ela se apresentava em shows. Poderia ter ido falar com ela, mas me contentei em ter a sua presença ali e guardar o momento na memória. Uma daquelas histórias que a gente conta para quebrar o gelo em ocasiões que estamos tentando nos enturmar em alguma situação social desfavorável.
Só que Buraco, meu primo, não se contentaria com aquilo. Ele já tinha chamado nosso único colega que tinha uma câmera digital naqueles tempos para tirar uma foto dele com sua grande conquista, da vida.
Depois de muito encher o saco dela, que foi até paciente e ouviu tudo o que ele tava falando, ele se contentou em apenas registrar o momento.
A cara dela diz muito nessa foto.
Um álbum de 2023 - Pitty - Espelhos
Me lembrei dessa história quando eu fui ouvir o novo disco que Pitty lançou recentemente. Apesar de ter achado ele bem morno — não por ser um disco de covers, eu adoro discos assim — tem algumas releituras interessantes nele como Girls Just Wanna Have Fun que abre o álbum, Be Bigger da Lisergia e Punk Rock, Hardocre Alto José do Pinho. Essa última, especificamente, me transportou até o disco Influir da banda Inkoma e me fez lembrar dos velhos tempos do Rock Baiano.
Fica aqui minha dica de hoje.
Obrigado por chegar até aqui, grande abraço.
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Queixar - Quando você quer dar em cima, ou melhor, cantar alguém, aqui a gente diz queixar. Existe a variante ficar de frete, mas geralmente nos refirimos a fulana queixou beltrana. Existe outro uso que é quando você quer pedir algo na maior cara de pau, ou seja, quando você é um queixão.
Armengue - Armengue é um lifestyle, é o nosso maior patrimônio tipo exportação. É a fusão do engenho com o improviso elevado a estado de arte. É a informalidade materializada na criatividade dos arranjos cotidianos para viabilizar o presente em meio à precariedade que nos rodeia, tornando a efemeridade de um acerto provisório num retrato do eterno, desafiando qualquer futuro.
Derivado: Cacete Armado, gambiarra (essa é nacional?).
Descrição surrupiada de Juliana Protásio.