"Destinos Prefigurados na Rocha": uma leitura de Meridiano de Sangue
A Bíblia - O Juiz - Melville, Faulkner e Milton - Gnosticismo - O Fogo Sagrado - Medievalismo - Violência - Um Poema Sublime - Determinismo - O Mito de Prometeu.
O que se pode dizer sobre Meridiano de Sangue que ainda não foi dito? provavelmente não muito. Ainda assim, eu quis falar sobre ele, já que tenho pensado nesse livro todos os dias desde que cheguei no enigmático epílogo, o qual segue impressionando uma variedade de leitores e acadêmicos desde sua publicação em 1985.
Como sempre invocando Donna Tartt em absolutamente tudo que eu escrevo, aqui a presença dela nunca se fez tão pertinente, pois, Meridiano de Sangue é a materialização absoluta da frase “beleza é terror”.
A primeira dificuldade que tive ao começar esse texto foi como definir o romance, afinal, ele pode ser lido de diversas formas (um dos elementos que mais me atrai numa obra literária). Há alguns dias eu estava refletindo sobre um post futuro, no qual eu falaria dos meus livros favoritos de 2023 e os dois primeiros que me vieram à mente, estranhamente lado a lado, foi Middlemarch de George Eliot e este livro de McCarthy. O que – pelo amor de deus – eles teriam em comum? Ao meu ver, apenas uma coisa: ambos são o que eu poderia chamar de “livros casca de noz” pois é como se eles abrangessem todo um universo completo e absoluto dentro da limitação de suas páginas – como em uma casca de noz. Existem nessas narrativas um mundo à parte e tão completo nos detalhes de ambientação, que é impossível conceber tanto que aquele mundo faça parte do nosso, quanto que existam outros mundos além daquele. São raros os livros assim, e normalmente eu gosto muito deles.
Meridiano é, na superfície, um western que se passa na metade do séc. XIX baseado numa gangue real de pistoleiros americanos, a “Glanton Gang”, contratados pelos mexicanos para caçar e escalpelar os índios Apaches que aterrorizavam os pueblos na divisa do México com o Texas. Abaixo desse primeiro plano, o que vemos é uma história de terror brutal e dantesca sobre religião, morte, justiça, determinismo filosófico, liberdade, o velho confronto entre o homem e as forças da natureza, e acima de tudo sobre as grandes estruturas cósmicas do mundo. Na verdade, dificilmente uma definição sucinta é capaz de abarcar a imensidão do livro com seus detalhes e cenários marcantes.
A segunda dificuldade foi decidir quais das dezenas de elementos que o autor insere no romance eu deveria falar sobre. O que deixou “divertida” uma leitura tão pesada foi tentar desvendar os símbolos e referências que McCarthy coloca, uns mais escancarados porém desconhecidos (que requer pesquisa) outros mais criptografados que precisaram de reflexão. Além disso, a estética de McCarthy é um grande diferencial. Ele faz o trabalho dificílimo de descrever o macabro com uma linguagem sublime e poética, incluindo as cenas de matança.
I. “Vós que entrais, abandonai toda a esperança”
Elementos bíblicos são abundantes, desde a recriação da sarça ardente até a sanguinolência característica do velho testamento. Esse é o aspecto de maior destaque quando se fala de Meridiano – a violência. Tenho algumas críticas quanto a isso. Sei que não é todo mundo que consegue lidar com uma carnificina daquelas, mas sendo sincera não achei tão horrível e monstruoso como a maioria das pessoas dizem que é. Não sei se sou eu que sou mais insensível à brutalidades (até porque acho que não sou), mas depois de ler acho que estamos nos prendendo aos aspectos errados. Sim, Meridiano é extremamente violento, mas em nenhum momento essa violência é gratuita e McCarthy não se demora nela mais do que o necessário para a história – ele não se entrega indulgentemente à violência e miséria que criou. Não é “trauma porn”. É um dos raros casos em que podemos dizer que a desgraça descrita realmente faz parte da trama e é narrativamente importante, seja por estarem carregadas de simbolismo, seja para moldar e revelar os personagens e a filosofia do universo do livro.
Inclusive, o próprio Harold Bloom (um dos maiores fãs de Meridiano) se sentiu desencorajado pela brutalidade, mas ele diz o seguinte:
No entanto, exorto o leitor a perseverar, porque Meridiano de Sangue é uma realização imaginativa canônica, uma tragédia americana e universal de sangue. O juiz Holden é um vilão digno de Shakespeare, semelhante a Iago e demoníaco, um teórico da guerra eterna. E a magnificência do livro - sua linguagem, paisagem, pessoas, concepções - enfim transcende a violência e converte o horror em arte aterradora, uma arte comparável à de Melville e à de Faulkner. (trecho em The Anxiety of Influence)
Pois bem, só tiveram dois momentos em que eu realmente pausei para poder processar o que eu estava lendo: a árvore dos bebês mortos e a chacina final da gangue onde descobrimos na tenda do juiz uma menininha nua de coleira e o Tolo, também nu. Eu tinha certo medo de ler esse livro por causa dos relatos que vi por aí. Novamente, não estou dizendo que ele não é pesado, porque é sim e com certeza não vai agradar todo mundo, mas com isso aprendi que é sempre melhor tirarmos nossas próprias conclusões, até porque esse livro, mesmo pesado, é uma das obras mais profundas e bem construídas que eu já li, e ainda bem que eu não deixei depoimentos na internet me pararem – digo isso na tentativa de incentivar alguém por aí que se encontre na mesma situação que eu estava.
Agora que devidamente abordamos a violência, passamos para o que está por trás da figura chamativa dela. Aqui devo dar outro “aviso” – na verdade, tá mais para uma conclusão que tirei a partir do tipo de leitura que eu adotei (muita anotação e atenção minuciosa ao que está sendo dito e porque) – Nada em Meridiano está lá por acaso, portanto requer um certo esforço a mais do leitor; o livro precisa que você queira desvendar o que está por trás se não você vai achar chato.
Isso porque a narrativa em si é muito simples e a desgraça meio “pointless” já que não é um enredo comum de superação de conflitos em três atos. É mais como um ciclo amaldiçoado e repetitivo de um bando de homens horríveis ora definhando no deserto, ora se entregando a uma matança horrorosa (sendo tanto assassinos quanto assassinados), e não há conclusão – e se parar pra pensar nem começo. A violência nesse Oeste é como uma grande linha contínua na qual McCarthy nos mostra um pequeno recorte – não há princípio nem meio nem final, o mundo de Meridiano apenas É, como se sempre tivesse sido e para sempre será. O juiz fala uma frase parecida em dado momento, e é o que me fez enxergar o universo do livro como uma noz contendo um universo hermeticamente fechado em si, mas extremamente vasto quando estamos imersos nele.
A falta de propósito para todo o sofrimento, algo que alguns leitores criticam compreensivelmente, é justamente o ponto. No mundo de Meridiano não há causas. Em certo ponto eu estava me perguntando “ok, mas eles estão indo pra onde? porque eles voltaram para o deserto? o que eles vão fazer uma vez que ganharem a recompensa em dinheiro?”. Quando você pensa que eles finalmente vão sair do inferno dantesco que foi sobreviver miseravelmente no deserto caçando indígenas, eles voltam para lá outra vez, até que são exterminados restando apenas os dois polos que dão corpo a essa história: o kid e o juiz
II. O juiz e a tradição literária
Numa entrevista, McCarthy disse: “O pior dos fatos é que os livros são feitos de livros. O romance depende, para sua sobrevivência, dos romances que já foram escritos”. É, talvez, o que Bloom chamou de “ansiedade da influência”, isto é, o fato de que o escritor está sempre preso à outros escritores do passado que construíram a tradição ao qual ele necessariamente pertence e inconscientemente (ou até consciente) se inspira, não havendo assim possibilidade de originalidade, ou mesmo vontade de produzir algo já que “alguém já fez melhor”.
No caso de Meridiano, vemos uma grande influência de Moby Dick e Paraíso Perdido, e ambos são livros carregados de literatura bíblica e de questionamentos grandiosos sobre o cosmos, a natureza, e a moral humana. Por isso que eu disse que o leitor que não quiser (ou não tiver saco) para fazer essas investigações provavelmente não vai gostar do livro como eu gostei. Todo o formato, o estilo, a linguagem empregados pelo autor nos convidam a procurar por um significado mais profundo.
Vou sair numa breve tangente agora: sei de dezenas de críticos, inclusive a Susan Sontag, que iriam ou me condenar ou condenar o próprio McCarthy por propor um “desvendamento” da obra literária, mas aviso logo a eles que vim em paz. No Methought de Setembro expliquei porque discordo do argumento de Susan de que esse exercício de interpretação investigativa viola a arte, e no caso de Meridiano, bem, é o que é: ele precisa mesmo desse trabalho a mais, mas a recompensa excede as expectativas, e eu prometo que a leitura se torna muito mais valiosa e preciosa assim. Não acho que todos os livros deveriam ser desse jeito (até porque seria muito cansativo), mas acho que devemos aproveitar ao máximo os que são!
Agora voltemos ao assunto das referências literárias. Alguns, como o próprio Bloom, veem o juiz como sendo a grande baleia branca, outros (como eu), o relacionam mais ao capitão Ahab. A presença de uma “missão de busca” (quest) que para nós leitores racionais parece absurda e sem rumo é uma das semelhanças entre a obra de Melville e McCarthy, e alude ainda à elementos medievais, mais sobre isso nesse vídeo aqui.
Bloom afirma que, apesar de Ahab e o juiz serem de fato parecidos, o juiz seria imortal como a Baleia, enquanto que o Ahab perece a bordo do Pequod. É um argumento convincente, afinal, o livro termina com o juiz vitorioso e cantarolando que “nunca vai morrer”. Contudo, um dos grandes elementos que faz o personagem do juiz ser o que é consiste na sua capacidade retórica e de maquinação, na sua ambição destruidora de absorver o mundo e controlar a natureza – muito semelhante a Ahab. Colocando a imortalidade mística do juiz versus a sua caracterização e linguagem, me parece que esta última tem mais peso na hora de fazer associações.
O juiz é uma grande incógnita. Ele é Deus? Satã? A Guerra? A Baleia? A Morte em si? Ele pode ser tudo isso, com certeza encontraremos argumento para cada uma dessas proposições. Não importa muito qual é a “certa” (até porque não acho que exista), importa que McCarthy nos deu um livro do qual podemos extrair tamanhas comparações. Temos que admitir que é impressionante. Como Bloom bem diz “O que o leitor deve pensar sobre o Juiz? Ele é imortal por princípio, como War Everlasting (Guerra Eterna), mas ele é uma pessoa ou outra coisa? McCarthy não nos diz, o que é ainda melhor, pois a ambiguidade é muito estimulante”.
Uma das cenas mais marcantes é o relato do ex-padre sobre quando o juiz ensina os homens a fazerem pólvora a partir de poeira vulcânica, urina, e outros elementos encontrados no deserto. Para aqueles homens ignorantes e brutos essa atitude parece bruxaria, reforçando o sentimento de assombro, e o pior: colocando os homens em dívida com juiz. Dívida pois sem essa pólvora todos teriam morrido ali mesmo nas mãos dos indígenas, desse modo, vemos que o conhecimento anormal do juiz é o que salva a vida da gangue, curiosamente semelhante a um pacto fáustico.
Outra associação demoníaca é que, no livro 6 de Paraíso Perdido, após uma derrota grave perante as forças do Arcanjo Miguel, Satã e seus demônios tentam criar uma arma que seja suficiente para este combate, mas Satã informa que não é preciso inventar muita coisa, pois os “ingredientes” já estão disponíveis na natureza:
“Not uninvented that, which thou aright | Believ’st so main to our success, I bring; | Which of us who beholds the bright surfáce | Of this ethereous mold whereon we stand, … | Deep under ground, materials dark and crude, | Of spiritous and fiery spume, till touched | With heavens ray, and tempered they shoot forth | So beauteous, op’ning to the ambient light.” (VI. 470-481)
Aqui ele explica como criar a pólvora, a partir de “materials dark and crude”, para lutar contra os anjos já que “with heaven's ray, and tempered they shoot forth”, da mesma forma que o juiz faz, inclusive o ex-padre conta que ele faz um discurso eloquente, mais uma vez lembrando o Satã discursando. McCarthy certamente tinha essa cena de Milton em mente, e daí surgem as associações entre o juiz e o Príncipe das Trevas, além do fato de que ambos são personagens muito atraentes.
Eu particularmente vejo esse episódio mais próximo da mitologia grega, como quando Prometeu ensina os homens a fazer fogo, mas enquanto o fogo foi o que possibilitou que os homens preservassem a vida, a pólvora é o que possibilita a guerra, e portanto a morte. Assim, o juiz seria uma espécie de Prometeu às avessas, dando aos homens a faísca misteriosa que permite a eles a continuidade da matança. Apropriadamente, o juiz diz à Davy Brown que “A Guerra é Deus”.
Ademais, tem uma cena de Game of Thrones que me faz pensar no juiz. Logo no começo da segunda temporada, quando Littlefinger tenta chantagear Cersei sobre a paternidade de Joffrey, ele diz a ela que “conhecimento é poder”; imediatamente ela ordena que seus guardas o matem, desistindo no último minuto, apenas para responder que “poder é poder”. Em Meridiano, o juiz é ao mesmo tempo Cersei e Littlefinger. Ele sabe mais que todo mundo (e fica implícito que ele sabe algo sobre Glanton), mas também é fisicamente mais poderoso que todo o resto. A gangue de simplórios fica desconcertada com a retórica dele, muitas vezes tentando fugir do assunto com um “lá vem você com essas conversas”. O poder que o juiz detém através de sua linguagem é o que o deixa irresistível, tal qual o Satã de Milton. Ele é o personagem mais interessante não só pela aura de mistério, mas porque a ele o autor atribui as maiores frases.
III. Et In Arcadia Ego
Mas e quanto ao “conhecimento é poder”? Uma das conexões mais interessantes que podemos fazer é com o Gnosticismo. Nos primórdios da era cristã, enquanto a nova religião se desenvolvia a partir da tradição judaica, vários tipos de cristianismo surgiram com suas particularidades, e entre elas o Gnosticismo. É muito difícil defini-lo, mas em suma é “a crença de que os seres humanos contêm uma parte de Deus (o bem supremo ou uma centelha divina) dentro de si, que caiu do mundo imaterial para os corpos dos humanos. Toda matéria física está sujeita à decadência, ao apodrecimento e à morte. Esses corpos e o mundo material (falsos), criados por um deus inferior (demiurgo), são, portanto, maus. Presos no mundo material, mas ignorantes de seu status, os pedaços de Deus precisam de conhecimento (gnose) para informá-los de seu verdadeiro status.” (World History Encyclopedia). No Gnosticismo, o conhecimento não é apenas poder, mas a chave para atingir a salvação divina, para retornar a comunhão com o criador.
De acordo com o pesquisador Christopher Douglas, McCarthy usa as descrições desoladas e hostis da terra como uma forma de questionar a natureza do Deus que criou esse mundo. “Como pode um Deus bom, onisciente e onipresente deixar que o mal aconteça?”, principalmente um mal tal qual ocorre no livro. O Gnosticismo diria que Yahweh (nome pessoal de Deus no judaísmo/velho testamento) não é nenhuma dessas coisas. Para um cristão gnóstico o Deus de Abraão e do velho testamento é algo oposto à salvação humana. A salvação gnóstica é da ignorância e não do pecado.
“No século II d.C., o cristianismo era uma religião separada do judaísmo, mas os cristãos mantiveram o Deus de Israel e muitos ensinamentos das Escrituras judaicas. Os gnósticos concordavam que o Deus criador do Gênesis criou o universo, mas a criação consistia de matéria maligna. Em alguns sistemas gnósticos, o Deus Abraâmico não era apenas mau, mas o próprio Satanás.” (World History Encyclopedia). Como vimos antes, o juiz não parece um ser mortal, e muito se discute se ele seria Deus ou diabo, visto que várias cenas que o envolvem fazem alusões à “mitologia” tradicional envolvendo um ou outro.
Porém, no Gnosticismo não existe diabo, apenas o “deus falso” ou “inferior” (chamado de demiurgo), que no fim das contas é parte do Deus maior. Então, é como se o bem e o mal viessem da mesma fonte, Deus e o diabo fossem a mesma entidade — no livro, essa entidade é o juiz. Se ele fosse só o diabo ele não guiaria os homens perdidos pelo deserto, tal qual o Deus do velho testamento faz com Moisés; se ele fosse só o Deus Abraâmico ele não precisaria fazer os pactos fáusticos nem manipulações barganhosas para conseguir o que quer.
Mas o que mais me parece indicativo do juiz como o demiurgo do Gnosticismo é como ele busca possuir todo o conhecimento somente para si ao registrar um objeto (seja uma folha, uma pedra, um sapato, um animal) em seu caderninho para em seguida destruí-lo. Nas palavras dele: “Tudo que na criação existe sem meu conhecimento existe sem meu consentimento” – percebam os paralelos com a doutrina da gnose; para ele, conhecer as leis e objetos da natureza significa controlá-la; impedir que os homens alcancem esse conhecimento, isto é, mantê-los na ignorância, é o que permite que o juiz exerça poder sobre eles. Podemos fazer várias interpretações em cima disso, inclusive quanto ao pensamento científico-racionalista contemporâneo.
Ainda no mesmo capítulo do relato do ex-padre, ficamos sabendo que o juiz possuía uma arma com a seguinte inscrição: Et In Arcadia Ego. Numa tradução literal, significa “Mesmo na Arcádia, lá estou eu" ou “Eu também estive na Arcádia" e dá o título a uma pintura de Nicolas Poussin. “Arcádia” é uma espécie de paraíso pastoral idílico (lembram do arcadismo?) e a frase seria como um memento mori, pois o “eu” da frase seria a morte, tal como interpretado pelo primeiro biógrafo de Poussin, Giovanni Pietro Bellori, lembrando ao espectador que, mesmo na feliz utopia da Arcádia, a morte ainda existe. Bloom comenta o seguinte: “Ele carrega um rifle, montado em prata, com seu nome inscrito sob o talão: Et In Arcadia Ego. Na Arcádia americana, a morte também está sempre presente, encarnada na arma do juiz, que nunca erra. Se a tradição pastoral americana é essencialmente o filme de faroeste, então o Juiz encarna essa tradição”
O juiz é o demiurgo e é um mensageiro da morte, impedindo a salvação gnóstica dos homens através do conhecimento. Ele é extremamente determinista, e vive fazendo alusões ao “destino” e à “ordem do mundo” sem nunca explicar como ela funciona. A sua implacabilidade retórica é desesperadamente convincente:
Não faz diferença o que o homem pensa da guerra. A guerra perdura. É a mesma coisa que perguntar o que o homem pensa da pedra. A guerra sempre vai existir. Antes do homem aparecer, a guerra estava à sua espera. A ocupação suprema à espera do praticante supremo. Assim foi e assim será Assim e de mais nenhum outro jeito.
Se o juiz realmente é o demiurgo do Gnosticismo, então para ele é imprescindível que os homens tenham fé nisso. Enquanto eles forem ignorantes de outros meios de vida, suas almas pertencerão ao deserto, e em última instância, ao juiz. Eles jamais conseguirão ultrapassar a barreira que o juiz projeta entre eles e a salvação (se é que ela é possível no universo de Meridiano). Como no sonho do kid, no qual “o vulto do juiz o impedia de enxergar” quem era o artesão na forja, na vida dos homens ele é uma sombra que paira em seus ombros e bloqueia suas visões, guiando-os no escuro para seus “destinos prefigurados na rocha”.
IV. Livro da Revelação
O pesquisador Dennis Samson em seu ensaio Learning from Art: Cormac McCarthy's "Blood Meridian" as a Critique of Divine Determinism acredita que Meridiano de Sangue pode ser lido como uma crítica artística a uma ideia teológico-filosófica, cuja tese seria a seguinte:
Filosofia “teo-determinista" do destino humano: (1) como Deus é absolutamente soberano sobre todas as coisas, Deus é o agente omni-causal de tudo; e (2) toda ação, portanto, reflete a santa vontade de Deus.
Através do romance, McCarthy demonstra o absurdo que é a ideia do determinismo divino na história humana, especificamente no contexto do “Destino Manifesto” da América do século XIX. Quando o juiz diz que a guerra é sagrada, ele está sendo coerente com o Téo-Determinismo, pois se Deus é a razão de todas as coisas, ele é causador da guerra tanto quanto ele seria do amor ao próximo.
Na lógica do juiz (e da própria narrativa até) esse Deus seria absolutamente terrível. Se a guerra é divinamente justificada, então o que é o mal? Percebam que todos os preceitos morais se tornam vazios, inúteis num contexto desses. O kid, por não compartilhar da fé do juiz nesse Deus, é um herege e precisa ser eliminado. Assim, o juiz, como interceptor sobrenatural que é, atua como o grande inquisidor do kid.
“Seus corações desejam a revelação de algum mistério. O mistério é que não existe mistério” é a fala profética do juiz. O motivo de não haver mistério é que tudo nesse mundo hermeticamente fechado seria pré-determinado. Talvez não saibamos porque o mundo é assim, mas se não há como mudar nem fugir da predestinação, faz diferença saber o motivo? Um mundo absolutamente determinado não possui ambiguidades. Para conceber o bem e o mal e a moralidade é preciso conceber o livre arbítrio — se o homem não faz as próprias escolhas ele pode fazer um juízo de valor?
Ao meu ver, não. O conceito cristão de um Deus bom e onipresente só pode existir nesse contexto se o destino dos homens não é pré-determinado. Se o juiz e o kid são livres nas suas escolhas, então podemos apontar onde o mal está em cada um. Se não, a natureza ética do juiz é irrelevante. Seriam todos paradoxalmente inocentes e culpados ao mesmo tempo — e assim McCarthy demonstra o absurdo epistemológico da ideia “Teo-Determinista”. Mas para que o mundo no qual Deus é a guerra se perpetue, o juiz precisa que os homens tenham fé na violência predestinada e inescapável.
Finalmente, o enigmático epílogo possui, em sua linguagem poética e mística, a derradeira conexão com o Gnosticismo. Segundo a interpretação clássica de Petra Mundik, o homem que avança abrindo buracos no chão “ferindo na rocha o fogo que Deus pôs ali dentro” é um símbolo para o exercício da gnose através do “pneumático” (indivíduo que recuperou a centelha divina e guia os outros), que trabalha libertando as faíscas divinas da pedra, que somos nós. A presença de um ser desses no epílogo, após a suposta vitória do juiz, demonstra que a afirmação de inexistência de mistério é falsa, pois vemos o movimento incessante (“então todos se movem novamente”) em busca da verdadeira revelação. Enquanto essa figura herética se mover na planície arrancando o fogo da terra, o juiz demiurgo e sua guerra divina não permanecerão sagradas.