Vou voar no natal esse ano de novo. Sempre esse ritual estrangeiro. As luzes coloridas borradas se tornam avisos acesos de cinto de segurança. Em nada me importa. Gosto mesmo é de furar nuvens, me banhar de azul. Logo viro um vento gelado que não vou ter nem chance de sentir. O azar maior são as asas cinzas de metal que me impedem até de tocar o céu. Ainda sim em vôo costumeiro já sei de cor a rota, rasgo um pedaço do tempo para inaugurar outro começo. Queria era saber pousar sozinha, viver no ruído constante do ar, tão alto que se anula em silêncio. Queria depender menos de saber voar. Queria era ser o vôo.
Foram 12 meses de pálpebras de aço, pesadas como nunca, cortinas fechadas para qualquer luz que ousasse pintar as janelas. Morri engasgada mais ou menos dez vezes por dia com a multidão de palavras que ficaram do lado de dentro. As poucas que escaparam pela brecha me devolveram um pouco do ar, mas ainda falta fôlego. Desde então ressuscitei poucas vezes. Nessas, como num lampejo, era ensinada por mim mesma como me ver novamente. Abro as mesmas portas, traço o mesmo caminhar. Ainda assim, encontro nova pista toda vez.
Mesmo andando de olhos fechados, sinto estar mais aqui do que em sonho. Por vezes, não tenho certeza. Por isso mesmo, conto de novo os dias, olho para trás em busca de mapa. Não adianta. Lembrar de estar acordada é exercício árduo, hábito a ser construído. Vou esbarrando em estados de “quase”, num transe indefinido que me afasta do chão. E é no hoje que pouso.
Volto a pensar no avião do dia 25. Por um instante, estou suspensa de tudo e já não importa se estou dormindo. Divido um punhado de sonhos breves com quem está por perto. Mesmo sem endereço, sinto alívio de me ver em um destino compartilhado. Ainda na alta pressão acima da terra, espero tentar viver mais uma vez. Nem sempre sou bem sucedida. Mas sei que há casas no amanhã que ainda desconheço. E, por sorte ou benção, sei que o sagrado também habita a véspera.
Tudo tem sua última vez. Cada esquina que atravesso carrega um sentimento de véspera pelo dia em que nunca mais irei assistir sua paisagem. Tento não pensar nisso para que a vida não se torne uma aflição de que tudo se acabe, mas carrego em mim, desde sempre, um enorme receio pelo fim, ao ponto de que tudo o que antecede o fim de qualquer acontecimento, o quase fim, se tornou muito pior do que quando as coisas se acabam de verdade.
Eu tentei de tudo para que nada chegasse ao fim. Por anos, acatei a nostalgia constante e me entreguei à brutalidade da mesmice de um ócio pesado. Com os olhos abertos e o coração no passado, não acontecia nada de novo e eu me jogava sob a memória de cada migalha de vida em que eu me sentia atravessado. De brinde, num piscar de olhos, vi que tinham se passado quatro anos e eu não tinha deixado nada acontecer. Não criava mais nada para me lembrar. O coração melava de angústia e o tempo me comia feito traça.
Quando criança, eu me recusava a comer o último Danette da geladeira, porque eu dizia pra minha mãe que eu não queria que ele acabasse. Um pouco mais velho, evitei ver meu avô nos seus últimos dias, porque achava que na lembrança ele não estava se desfazendo, e desse jeito aquele velho ia estar comigo pra sempre. Mais um tempo depois, quase ontem, me ensinei a não me despedir e a me satisfazer mais com a saudade do que com a própria pessoa, porque o alimento que essa falta me dava era eterno. E injusto.
Segui sendo injusto, comigo e com quem amo, por muito tempo, até perceber que em todos os meus últimos anos eu gastei a vida lutando contra o inevitável destino de fins e recomeços. Eu durmo e não sou mais o mesmo, falo palavras que não são minhas e ganho em mim um pedaço de quem as possui. Vejo meus pais mais velhos, fico sabendo de um acontecimento na vida de algum amigo e sinto um sentimento que já esteve por aqui, mas com razões diferentes. Tem um pouquinho de novidade em mim a cada dia que passa, e isso me lembra de esquecer tudo o que me fala sobre os caminhos da vida, me fazendo seguir em frente com os olhos no céu e o coração no agora.
Ainda é difícil pra mim que as coisas se acabem, e isso piora um pouco em dezembro, com os seus trinta e um dias de quase fim. Vou me sentindo apertado por essa sensação de véspera, que já foi o significado da minha vida, e atravesso cada dia desse mês tentando não me entregar a outro tempo, em que tudo já se passou. Fico quase trinta dias emocionado, para que no último segundo desse ano tudo se acabe em fogos e eu não consiga chorar uma única lágrima sequer da emoção que esses dias me causaram, mas esse ano, quando eu olhar o céu e ver toda a explosão de colorido, sei que o que eu quero para agora é que tudo se acabe e eu me perca numa maré de fins e recomeços, porque eu já me cansei de não me sentir pronto para cada destino novo que a vida vem tentando traçar, e o meu único lugar vai começar a ser aqui, entregue à brutalidade do agora.