O “paradoxo” do cortisol – um anti-inflamatório que inflamaɁ Parte 1 de 2
O uso de corticoides na medicina pode estar sendo uma fonte preocupante de iatrogenia e cronificação de doenças
[Imagem: asna.ru]
Para certos doutores, um processo inflamatório é motivo suficiente para o uso do corticoide. O cortisol, para eles, é um anti-inflamatório e ponto, um anti-inflamatório como outro qualquer [como a aspirina, apenas para dar um exemplo].
Existe um “gatilho fácil”, em certos meios médicos, que dispara cortisol para qualquer processo inflamatório que apareça no caminho e tudo que lhe interessa saber dessa droga/ hormônio é seu efeito anti-inflamatório.
O problema é que, no real, cortisol é tudo menos apenas um anti-inflamatório.
E tem potencial para criar mais problemas do que aqueles que resolveria.
E, portanto, ficar refém da ideia de que cortisol resolve processo inflamatório agudo – sem refletir até o final sobre seus outros efeitos -, pode ser a cartilha ou a receita mais certa para a produção de doenças, iatrogenias, ano após ano, com o uso do corticoide.
G Dinkov divulgou estudo científico [A] que demonstrou que o uso de corticoide faz com que o corpo passe a manifestar – de forma desregulada e especialmente após o término do seu uso – vias bioquímicas inflamatórios de vários tipos. E essa será a explicação para o fato de que em uso de longo termo, mesmo que em pequena dose, os glicocorticoides pioram a doença para a qual são utilizados.
Eis o chamado “paradoxo” do corticoide: usado para desinflamar, promove inflamação crônica. E o estudo mostrou que, no contexto de uma dieta high fat isso fica pior, e mais ainda se a alimentação trouxer os óleos insaturados.
Ao contrário do cortisol, esteroidais como pregnenolona e progesterona não possuem aquele efeito de piorar o quadro inflamatório e, ao contrário do cortisol, reduzem expressão de receptores inflamatórios do tipo das endotoxinas e também mediadores inflamatórios que o corticoide exacerba.
No argumento de Dinkov, resenhando e opinando sobre o artigo [A].
“Embora esteja além da dúvida de que, em processo agudo, glicocorticoides suprimem inflamação, há estudos demonstrando que os glicocorticoides desregulam a expressão de várias vias inflamatórias tais como a da família dos receptores de endotoxinas [TLR4 /9] assim como as vias da ciclooxigenase [COX].
De tal forma que assim que se detém o uso do glicocorticoide, o paciente quase seguramente terminará com uma inflamação basal superior a antes do uso do esteroidal.
Esse efeito pró-inflamatório dos glicocorticoides é algo que a maioria dos doutores deve achar sem interesse ou diretamente negar, mas é o que explica porque uso de glicocortidoides no longo prazo ou mesmo baixa dose, invariavelmente piora o prognóstico de qualquer doença para a qual eles foram prescritos.
As afecções chamadas ´autoimunes´ são algumas das primeiras a demonstrar um curso piorado no longo prazo quando cronicamente tratadas com glicocortidoides, e essa é uma das razões pelas quais muitos protocolos oficiais atuais indicam que se deve somente recorrer ao glicocorticoide no caso de ´exacerbação aguda´ de tais doenças. Observações similares foram registradas para artrite, doença cardiovascular, dor crônica etc.
O estudo abaixo [A] agrega mais evidências para aquele ´efeito paradoxal´ pró-inflamatório dos glicocorticoides, agora no contexto de dietas gordurosas, high fat, mesmo de curta duração.
De fato, o estudo sugere que são os glicocorticoides que podem dirigir a inflamação vista em pessoas com dietas de muita gordura [high fat] e não a gordura em si mesma; embora deva haver a cautela de se observar que em casos de dietas high fat de óleos insaturados, o fato é que estes óleos possuem, em si mesmos, efeitos inflamatórios.
De toda forma, o cortisol elevado promove vários biomarcadores inflamatórios inclusive a resposta inflamatória à administração de endotoxinas/LPS, o que é coerente com as descobertas de estudos prévios que mencionei sobre a excessiva expressão do receptor TLR4/9 pelo cortisol, causando comprometimento da memória.
Todos esses efeitos – na inflamação e cognição – foram suprimidos pela administração do bloqueador do cortisol RU486.
Dessa forma, a moral da história é que glicocorticoides não são todos benignos e podem, de fato, promover o efeito oposto ao que pretende a medicina, ao serem usados no longo prazo. [...] De tal forma que, no final de contas, o estudo traz um bom argumento em favor do uso de esteroidais como pregnenolona e progesterona, já que ambos mostraram reduzir a expressão do TLR4, da ativação do ´inflamasoma´ e são também antagonistas do cortisol no nível do receptor” [B].
Pregnenolona e progesterona [além de testosterona/DHT] podem cumprir o papel de inibidores do cortisol, se usados adequadamente e G Dinkov, dentre outros, também cita a emodina como capaz de baixar a síntese do cortisol, inibindo a enzima 11b-HSD1.
Quanto à pesquisa [A], os cientistas ponderam que uma “massa crescente de literatura demonstrou que consumo de uma dieta high fat pode causar comprometimento da memória em humanos e ratos mesmo nos primeiros 3-5 dias” [...] Exploramos aqui, na pesquisa, a nova ideia de que consumo mesmo de curto prazo de gorduras poderia induzir uma elevação na corticosterona do hipocampo [cérebro]”, amplificando a resposta inflamatória[A].
“A despeito do seu clássico papel como imunossupressor, existe crescente literatura demonstrando que cortisol pode preparar a micróglia do hipocampo e potenciar a resposta neuroinflamatória a um subsequente desafio inflamatório”. “Mostramos que ele potencializa a resposta neuroinflamatória induzida pelos LPS [endotoxinas] e também o comprometimento de memória” [A].
Concluem que o cortisol apresenta aquele efeito pró-inflamatório pelo simples fato de exacerbar vias inflamatórias de vários tipos.
Dessa e de outras evidências, uma das conclusões pode ser a de que o os efeitos da adesão acrítica de doutores ao uso de corticoides pode estar comprometendo a qualidade de vida do paciente, especialmente do idoso, de forma alarmante.
E não, esse debate não está sendo feito em grande escala, nas faculdades, nos congressos; e na nossa formação não somos informados de tais efeitos deletérios no uso do corticoide e, ainda por cima, é possível que seu médico considere tudo isso desinformação; desde que não se digne a ler o trabalho abaixo e outros que já se acumulam no PubMed e Google Acadêmico.
Mas confiemos na notória sensibilidade científica do grande público médico, especialmente quando o próprio paciente chega com a informação cabível e científica até ele. Cabe ter a fé de que muitos deles estarão abertos à boa nova.
GM Fontes, Goiânia, 2-5-24
As informações aqui presentes não pretendem servir para uso diagnóstico, prescrição médica, tratamento, prevenção ou mitigação de qualquer doença humana. Não pretendem substituir a consulta ao profissional médico ou servir como recomendação para qualquer plano de tratamento. Trata-se de informações com fins estritamente educativos. Nenhuma das notas aqui presentes, neste blog, conseguirá atingir o contexto específico do paciente singular, nem doses, modo de usar etc. Este trabalho compete ao paciente com seu médico. Isso significa que nenhuma dessas notas - necessariamente parciais - substitui essa relação.
Referências ________________
[A] SOBESKY J L D´ANGELO H M WEBER M D, 2016. Glucocorticoids Mediate Short-Term High-Fat Diet Induction of Neuroinflammatory Priming, the NLRP3 Inflammasome, and the Danger Signal HMGB1. eNeuro. 2016 Aug 30;3(4):ENEURO.0113-16.2016. doi: 10.1523/ENEURO.0113-16.2016. eCollection 2016 Jul-Aug. PMID: 27595136 PMCID: PMC5004086 DOI: 10.1523/ENEURO.0113-16.2016 “The impact of the foods we eat on metabolism and cardiac physiology has been studied for decades, yet less is known about the effects of foods on the CNS, or the behavioral manifestations that may result from these effects. Previous studies have shown that long-term consumption of high-fat foods leading to diet-induced obesity sensitizes the inflammatory response of the brain to subsequent challenging stimuli, causing deficits in the formation of long-term memories. The new findings reported here demonstrate that short-term consumption of a high-fat diet (HFD) produces the same outcomes, thus allowing the examination of mechanisms involved in this process long before obesity and associated comorbidities occur. Rats fed an HFD for 3 d exhibited increases in corticosterone, the inflammasome-associated protein NLRP3 (nod-like receptor protein 3), and the endogenous danger signal HMGB1 (high-mobility group box 1) in the hippocampus. A low-dose (10 μg/kg) lipopolysaccharide (LPS) immune challenge potentiated the neuroinflammatory response in the hippocampus of rats fed the HFD, and caused a deficit in the formation of long-term memory, effects not observed in rats fed regular chow. The blockade of corticosterone action with the glucocorticoid receptor antagonist mifepristone prevented the NLRP3 and HMGB1 increases in unchallenged animals, normalized the proinflammatory response to LPS, and prevented the memory impairment. These data suggest that short-term HFD consumption increases vulnerability to memory disruptions caused by an immune challenge by upregulating important neuroinflammatory priming and danger signals in the hippocampus, and that these effects are mediated by increases in hippocampal corticosterone”.
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