Tireoide versus organismo: via de mão dupla na construção do hipotireoidismo [Parte 1 de 2]
Hipotireoidismo e suas causas – elementos introdutórios
[Imagem: nfapteka.ru]
Quando o hipotireoidismo se instala, a resposta corporal [resposta default] é aumentar os hormônios do estresse. É uma tentativa de se adaptar ao agente estressor, no caso, a falta do hormônio tireoidiano. E é a resposta diante da crise de oferta de energia, provavelmente instalada na forma de uma instabilidade glicêmica. O fato fisiológico básico – neste caso, mas não em outros - é a queda no funcionamento da tireoide.
Neste caso, terá sido uma crise da glândula diretamente. Alguns chamam de hipotireoidismo primário.
No entanto, é comum que a tireoide possa ser inibida a partir de vários pontos fundamentais da nossa fisiologia, do corpo.
Dito de outra forma, hipotireoidismo não tem que ser fruto apenas de desarranjo direto da glândula. A tireoide pode ser travada a partir de uma disfunção determinada no fígado, também por conta de baixa proteína na alimentação diária ou também por uma dieta globalmente de baixo açúcar. Ou falta de determinados nutrientes [selênio, vitamina A para citar dois exemplos críticos]. Ou estresse crônico.
Esta nota tem a ver com a tentativa de sumarizar gargalos metabólicos a partir dos quais a tireoide vai deixando de funcionar a contento e o hipotireoidismo tende a se instalar por efeito do impacto do metabolismo sobre a tireoide. Alguma coisa a respeito foi escrita aqui e aqui. Também aqui.
Antes, porém, há que se chamar a atenção para um destaque inicial, que confunde muita gente, muitos endocrinologistas com certeza. Existe um tipo de hipotireoidismo no qual os hormônios da tireoide aparecem normais, nos testes, T3 e T4 se situam dentro da faixa de normalidade e, no entanto, pode estar ocorrendo um profundo hipotireoidismo. A razão: o hormônio tireoidiano está disponível, é fabricado, circula, mas não entra na célula [T3, no caso]. aparecerá o quadro clínico de hipotireoidismo.
Esse tipo de hipotireoidismo, no qual hormônios tireoidianos estão com seus valores normais no sangue, mas a célula não acusa seu efeito, é dificílimo de ser diagnosticado, resolvido e alguns chamam isso de “resistência ao T3”. A pessoa possui o hormônio ativo, mas continua com hipotireoidismo. Ele simplesmente não entra nas células.
Também existe o tipo de hipotireoidismo no qual a glândula está bem, de início, produz os hormônios, mas o hormônio inativo, o T4, não consegue ser ativado no fígado [principal local de sua ativação no organismo].
Uma espécie de hipotireoidismo “hepático” [Ver aqui].
Haverá uma consequência dessa não ativação hepática do T4: este tende a se acumular, inativo. E haverá tendência do T4 que se acumula ser convertido em T3-reverso, que compete com o T3 na entrada da célula [óleo insaturado também tem esse potencial de inibir a tireoide, no seu caso, seja diretamente ou na própria célula]. Pode-se dizer que T3-reverso é tóxico, é inibitório da função tireoidiana.
Não é desejável que ele suba [tampouco o TSH, cujo marco desejável, fisiologicamente, é o mais próximo de zero possível].
Nesse processo, como foi dito, o T4 tende a se acumular, com potencial, igualmente, de inibir a tireoide, nesse caso, por feedback com o TSH. E continua apresentando sua tendência a se converter em T3-reverso. Basta que haja um ambiente de estresse, de cortisol cronicamente alto. E o T3-reverso, reiterando, impede a entrada do T3, ativo, na célula e, por tais vias – pela via do T4 acumulado, do T3-reverso alto - teremos uma função tireoidiana inibida como resultante.
Quanto ao TSH, nesse caso, pode estar alto ou não, já que obedece a outras injunções também.
Inclusive o TSH pode até ser zero [isto é, normal], mas – e aparentemente de forma contraditória – no entanto, o corpo seguir fabricando T3-reverso.
Isto é, teremos T3-reverso alto, lado a lado com TSH zero.
Neste caso, a origem do T3-reverso será estresse, cortisol cronicamente aumentado, impedindo a ativação do T4 no fígado. Gerando T3-reverso.
E este, o T3-reverso, inibidor da tireoide, estará expressando muito mais o grau de estresse da pessoa do que uma disfunção na glândula ou na hipófise. Nunca se deve deixar de levar em conta que o regime do cortisol inibe o regime tireoidiano. E nem tampouco ignorar o poder do estresse no hipotireoidismo.
Dito isso, vejamos os vários elementos que podem levar a um quadro de hipotireoidismo que, como já’ deve ter ficado claro, nem sempre começa na glândula.
No caso do hipotireoidismo “hepático” - neste caso, teremos que o fígado não estará ativando o hormônio tireoidiano inativo [T4] que vem da glândula. [A glândula fabrica T4 e T3 na proporção de 3:1]. As razões para a não ativação: pode estar ocorrendo uma disfunção hepática importante, clinicamente suficiente para inibir aquela ativação.
Causas podem ser, por exemplo, um fígado “intoxicado”, isto é, ocupado em se livrar da massa de endotoxinas que a alimentação pró-bactérias lança sobre ele copiosamente [isso tipicamente ocorre com os consumidores inveterados de fibras vegetais pró-bióticas, grãos e amidos]. Ou pode estar comprometido por sobrecarga tóxica ambiental de todo tipo [óleos insaturados, xenoestrógenos, aditivos e excipientes, álcool, flúor e assim por diante].
Ou pode ser o fígado de uma mulher muito estrogenizada que, ainda por cima, “repõe” estrogênio por orientação médica ou faz uso da pílula. Ou também pode se tratar de um fígado que não conte com os nutrientes necessários para ativar T4, a exemplo de selênio e açúcar.
Portanto, um fígado intoxicado por endotoxinas, por outros elementos, irá permitir que o estrogênio suba nos tecidos: novo impacto negativo sobre a função tireoidiana. O fígado estará demasiado ocupado com toxinas vinda das bactérias intestinais em vez de cumprir seu papel fisiológico de principal detoxificador do estrogênio plasmático.
Falta de proteína suficiente, por sua vez, compromete função hepática e, na sequência, tireoide, muitas vezes pelo consequente aumento do estrogênio.
Hipotireoidismo por dominância estrogênica – um hipotireoidismo que vem do estrogênio, por assim dizer. Em excesso, estrogênio agride diretamente a glândula; ele inibe as enzimas proteolíticas tireoidianas que liberam o hormônio tireoidiano na circulação. Estrogênio tem, portanto uma via direta – dentre várias outras – para inibir a glândula tireoidiana.
Pode ser hipotireoidismo derivado de problemas no carreamento do hormônio. Para chegar à célula-alvo, o hormônio tireoidiano tem potencial, como foi argumentado aqui, de ser bloqueado em vários pontos do seu caminho. Inclusive lá, nos receptores da célula alvo.
Pode ser bloqueado na tireoide [por estrogênio, óleo insaturado], também no carreamento plasmático - nas proteínas carreadoras [E] -, ou ficar retido no fígado pela não ativação do T4. Mas também, diretamente, pode não entrar na célula [na competição com o T3-reverso].
Hipotireoidismo por estresse crônico. Retomando: um ponto central a ser sempre lembrado: o estresse crônico engendra hipotireoidismo. A entrada em cena do cortisol inibe a função tireoidiana, diretamente, lá no fígado.
Aqui, o cortisol em excesso e/ou crônico, aciona uma enzima que converte o T4 em T3-reverso. O acúmulo deste, já foi mencionado, impede a entrada do T3 ativo. Uma pessoa que apresente, laboratorialmente, uma relação muito grande entre os valores de T3 e T3-reverso, tecnicamente, clinicamente, estará com hipotireoidismo.
Portanto, estresse gerando hipotireoidismo.
Só que, por sua vez, hipotireoidismo leva a mais dependência dos hormônios do estresse, conduz a hiperativação de hormônios do estresse com aumento de estrogênio, da serotonina e outros.
Outra causa do hipotireoidismo pode ser a inibição metabólica por várias outras vias. Por exemplo, o diabético, que ao se tornar queimador preferencial de gorduras, inibe a respiração oxidativa e, por tabela, o desempenho hepático em vários sentidos, inclusive na sua agora menor funcionalidade -por conta da desenergização], de ativação do T4.
O fígado do diabético tende a ser hipofuncional [rins também] menos energizado, menos capaz de cumprir funções com ativar o hormônio tireoidiano. Neste caso, inibição da respiração celular comprometendo função hepática.
Por fim, o hipotireoidismo também, levará – naquela via de mão dupla tireoide-fígado e fígado-tireoide – à inibição da ativação do T4 no fígado. Isto é, ter hipotireoidismo significará desenergizar praticamente todas as funções corporais, inclusive a hepática.
[Continua na segunda Parte]
As informações aqui presentes não pretendem servir para uso diagnóstico, prescrição médica, tratamento, prevenção ou mitigação de qualquer doença humana. Não pretendem substituir a consulta ao profissional médico ou servir como recomendação para qualquer plano de tratamento. Trata-se de informações com fins estritamente educativos. Nenhuma das notas aqui presentes, neste blog, conseguirá atingir o contexto específico do paciente singular, nem doses, modo de usar etc. Este trabalho compete ao paciente com seu médico. Isso significa que nenhuma dessas notas - necessariamente parciais - substitui essa relação.
Referências ________________
[A] PEAT, Ray, s / d. TSH, temperature, pulse rate, and other indicators in hypothyroidism. In: https://raypeat.com/articles/articles/hypothyroidism.shtml
[B] MALBON C C CAMPBELL R 1984. Thyroid hormones regulate hepatic glycogen synthase. Endocrinology. 1984 Aug;115(2):681-6. doi: 10.1210/endo-115-2-681. PMID: 6430678 DOI: 10.1210/endo-115-2-681 “Short term (48 h) in vivo administration of either T3 or T4 was associated with an increase in hepatic glycogen synthase activity in the rat. Administration of 0.25 mg T3/kg BW 48, 24, and 2 h before enzyme preparation increased the total glycogen synthase activity by approximately 50% and increased the percentage of synthase in the I or active form from 19 +/- 1% to 63 +/- 3%. These effects of thyroid hormones on glycogen synthase were rapid (expressed within 24 h) and dose dependent with respect to T3 or T4. Fasting rats for 24 h increased hepatic glycogen synthase levels in control but not thyroid hormone-treated rats. Total glycogen synthase activity of rats administered thyroid hormone and fasted for 24 h remained 1.4-fold greater than that of their fasted euthyroid controls. The percentage of synthase in the I form was 79 +/- 4% for the fasted T3-treated rats compared to 51 +/- 2% for their fasted euthyroid counterparts. Thus, both total hepatic glycogen synthase activity and the percentage of synthase in the I form are increased by short term administration of thyroid hormones in vivo”. Hormônio tireoidiano aumenta acumulação de glicogênio hepático.
[C] BOLLEN M STALMANS W1988. The effect of the thyroid status on the activation of glycogen synthase in liver cells. Endocrinology 1988 Jun;122(6):2915-9. doi: 10.1210/endo-122-6-2915. “PMID: 3131128 DOI: 10.1210/endo-122-6-2915 “Isolated hepatocytes from hyperthyroid and euthyroid rats showed the same rate and extent of activation of glycogen synthase after addition of glucose (10 mM or 60 mM). In liver cells from hypothyroid rats this activation occurred at a 7-fold lower rate. However, complete activation of glycogen synthase occurred eventually in broken-cell preparations from either source during incubation in vitro. Glycogen synthase phosphatase was then quantitatively assayed in liver homogenates with exogenous synthase b as substrate. These assays revealed an increased synthase phosphatase activity (approximately 160%) in the hyperthyroid liver and a decreased activity (to approximately 60%) in the livers from hypothyroid rats. These activity changes involved both the cytosolic and the glycogen-bound synthase phosphatase. The increase in the activity of synthase phosphatase after the administration of T3 became maximal after 48 h. We conclude that thyroid hormones control hepatic glycogen synthesis, at least partly by an effect on synthase phosphatase”. A síntese de glicogênio hepático é controlada pelo T3.
[D] HEYMA P LARKINS R G 1982. Glucocorticoids decrease in conversion of thyroxine into 3, 5, 3'-tri-iodothyronine by isolated rat renal tubules. Clin Sci (Lond). 1982 Feb;62(2):215-20. doi: 10.1042/cs0620215. PMID: 7053919 DOI: 10.1042/cs06202151. “The effect of glucocorticoids on the deiodination of thyroxine (T4) to 3,5,3'-tri-iodothyronine (T3) was studied in rat renal tubules prepared by collagenase digestion. 2. In short-term (6h) experiments, cortisol and dexamethasone inhibited the conversion of T4 into T3 at concentrations of 2 X 10-4 mol/l and 2 X 10-5 mol/l respectively. The inhibition by cortisol and dexamethasone was time dependent and was prevented by actinomycin D and progesterone, suggesting that the inhibition is mediated by an effect on nuclear transcription dependent on binding to glucocorticoid receptors. 3. In long-term (16 h) experiments, cortisol and dexamethasone inhibited T4 to T3 conversion by the tubules at concentrations of 1 X 10-12 mol/l and above. In addition, physiological concentrations of corticosterone (1 X 10-8 mol/l) were able to decrease T3 generation from T4. 4. Our data provide strong evidence that physiological concentrations of glucocorticoids are able to affect T3 production from T4 directly and suggest that they may be important regulators of T4 deiodination”. Cortisol inibe a conversão de T4 em T3.
[E] O hormônio tireoidiano circula no plasma e penetra nas células-alvo carreado por proteínas determinadas. Não faz qualquer sentido medir o hormônio “livre”; ele não precisa ser “livre” para agir fisiologicamente e nem precisa estar “livre” para entrar na célula. T3-livre e T4-livre são, como explicou mais de uma vez R.Peat, constituem artefatos laboratoriais e/ou desconhecimento de como tais hormônios circulam e atravessam a chamada membrana celular.
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