volto de Santos no ônibus. é noite.
pela janela, as luzes dos postes giram como piões flamejantes e espalham seu halo alaranjado na forma de uma gota geométrica. isso é tudo que se pode ver do mundo de fora: sombras montanhosas e gotas de fogo elétrico a farejar o indiscernível.
dentro do ônibus, as numerações de led das poltronas refletem através do vidro e imprimem-se na tela da noite. nessa noite de árvores escuras e luz frenética e números brancos. o ônibus parece ser duas vezes mais largo do que realmente é: projeta-se sobre a paisagem. a noite vista pela janela é uma projeção, uma tela de cinema onde nada acontece, apenas a vida e seus impulsos elétricos. a projeção das luzes de dentro e de fora cruzam-se no meu olhar. 12 e 13. 16 e 17. 23 e 24. o ônibus, um fantasma, um duplo de si mesmo a atravessar a estrada.
passar debaixo de um túnel na estrada nunca me será banal. o ônibus ronca sob a montanha, envolto pela abóboda de concreto onipresente e ubíqua. um túnel está em todos os lugares ao mesmo tempo. engole-nos – a projeção do ônibus apaga-se – e promete nos cuspir. e se não cuspir? e se. todos os terrores infantis passam debaixo de um túnel.
volto para a casa no ônibus 177h de noite. seu letreiro pisca: cidade universitária – santana. meu destino é a rua glete mas ainda me espera a teodoro inteira o pedaço da bela cintra e a angélica. chove a cântaros.
olho pela janela e penso exatamente isso: chove a cântaros. trovoa. lembro das janelas que deixei aberta em casa. a água da chuva desce verticalmente pela janela como se fossem corredeiras. é tanta água que se crê que nunca mais vai parar de chover. olho, protegida no escafandro, para o espetáculo da chuva.
as luzes dos postes e dos faróis dos carros refletem n’água que escorre pelo vidro e transforma a paisagem urbana num quadro impressionista ou num filme de wong kar wai. o trânsito está lento, a velocidade do mundo se rarefaz. apenas a chuva corre e se apressa. nos bancos do ônibus, nas minhas mãos e braços e no livro que eu parei de ler, a chuva e a luz desenham reflexos dourados que perseguem-se uns aos outros sem nunca se alcançarem. a mulher sentada à minha frente passa a mão no vidro acompanhando os rasgos d’água. é estranho tocar a água e não se molhar. apenas os rastros de luz líquida atravessam nossas peles secas.
tudo se movimenta, mas eu me sinto parada, suspensa. no livro que leio a autora conta que quando chovia no campo de refugiados da Malásia os vermes saíam das fossas sépticas aos milhares e a terra vermelha e argilosa tornava-se branca e ondulante. eu olho para a chuva nas esquinas, nos canteiros e nos desníveis acumulando-se em poças e enxurradas. ela ameaça tornar a rua um rio.
o rumor da chuva cala qualquer outro som. uma certa tensão do futuro próximo torce o semblante dos passageiros. pensamos no momento em que o ônibus alcançar nosso destino e formos expelidos do aquário de reflexos em meio ao toró voraz. molharemos nossos pés, encharcaremos as meias, murcharão os cabelos, praguejaremos alto.
por enquanto, os grossos pingos d’água espatifam-se no asfalto como pequenos fogos de artifício. como festins e seus estilhaços de prata reluzente. na paisagem chuvosa através do vidro, o que há mais de insignificante reluz.
olá. reparou que coloquei um #aquário? pois sim decidi inventar moda. acontece que os textos que eu costumo publicar aqui me demandam muito tempo: esses meio ensaísticos que eu encaquesto em relacionar – quase sempre – três coisas. parece que eu caí, de novo, na armadilha de sempre – de complicar tudo, de tornar tudo uma grande coisa.
mas eu queria escrever mais por aqui. eu poderia escrever somente para mim – mas eu sou blogueira desde pequenininha. além de tuiteira. escrever já é um troço meio público pra mim. é claro que eu também sonho em ser reconhecida e convidada a escrever. imagina. deve ser ótimo.
enfim. minha ideia é publicar coisas mais curtas e rápidas. não pretendo abandonar os ensaios de ensaios. mas escrever uma vez por mês tornou-se mais desafiador do que eu imaginava. a solução? escrever mais. e escrever menos. para, quem sabe, escrever melhor.
vou então criar essa seções do substack a partir dessas hashtags – que, para honrar o nome peixe da glote, tem a ver com… peixes. #escamas: resenhas ou comentários rápidos sobre as minhas leituras. a próxima vai ser Ru da vietnamita Kim Thuy – que eu citei ali em cima. #linhalateral: resenhas/comentários sobre filmes que me chamam a atenção. #aquário: textos como esse aí de cima – mais poéticos. sinto que minha escrita tá cada vez mais conectiva, cheia de vírgulas e tenho me contido no uso de imagens e metáforas. mas como falar da forma da luz de um poste da estrada visto de um ônibus? claro, eu ainda dependo de fatores externos: de terminar o livro que eu estou lendo, de ter saco de escrever sobre um filme bom, de estar aberta para o inusitado da vida – mas vou tentar alguma periodicidade para me organizar.
espero que você não me odeie – sempre fiquei com medo de importunar a caixa de entrada das pessoas. mas eu recebo newsletters de lojas todo santo dia, sem nenhum pudor. e eu que vou ter pudor? de qualquer forma, se você tem um perfil aqui no substack pode optar para ler só no app ou no site.
não costumo pedir para compartilhar, curtir e ativar o sininho, mas se você gostar do que eu escrevi, cada apoio importa. e dá pra comprar meu livro, também. ah, qualquer sugestão é mui bem vinda.
um abraço. e feliz dia das mulheres, se possível.