pesquisa talks #29: Pequenos grandes prazeres
Por Barbara Heckler e Camila Camargo
[#29] Pequenos grandes prazeres
Hobbies, manias e jeitos de passar o tempo
Crédito: Social History Archive - Unsplash
Adultos cansados
por Camila Camargo
Domingo era dia de vó. Almoços caprichados, encerrados com sobremesas que não conheciam o low carb. Depois da refeição, as cortinas corriam os trilhos e o ruído da TV embalava o sono dos pais, tios e avôs. As mulheres, sobrecarregadas pelas atividades domésticas, pareciam ansiar por um passeio mais animado, o que raramente acontecia. Quando se é criança, os adultos parecem tão cansados! Esse pedaço da tarde me enchia de tédio, preenchido com aventuras ao ar livre ou pelo portal mágico dos artesanatos, roupas e maquiagens das minhas avós. Com frequência, me juntava a elas na cozinha para fazer bolo. Mexer na batedeira era uma responsabilidade emocionante, cuja recompensa eram as sobras de massa que iam do dedo para a boca. A palavra hobby não cabia na infância, talvez por antagonizar com a ideia de produtividade do mundo adulto. Felizmente, pude brincar muito nessa fase e exercitar a curiosidade que se converteria na minha carreira de pesquisadora. Um detalhe que me ocorre agora é que eu adorava simular um monte de tarefas que espelhavam a realidade de gente grande. Você também? Por tempos, fingi ser secretária de dentista, manejando uma agenda fictícia super disputada. Depois, junto com amigas inseparáveis, inventamos que éramos donas de uma escola, de um canal de TV e, finalmente, uma promissora agência de eventos, onde aliviámos o stress imaginário com cigarros de lápis. Até que, numa profecia auto realizadora, cresci e me tornei a própria adulta cansada, do pós almoço dominical. Como ouvi esses dias a psicanalista Maria Rita Kehl falar, “Eu gosto muito da profissão que eu escolhi, mas não quer dizer que eu goste de trabalhar o tanto que eu trabalho.” Em sua crítica interessante sobre a exploração da mão de obra no capitalismo, ela me fez pensar como os passatempos também têm sido cooptados por essa lógica. Em ocasiões de ócio ou lazer, fabricamos conteúdo para redes sociais, enriquecendo algum bilionário por aí. Até os lançamentos de filmes e séries têm ganhado um caráter funcional, em uma cauda longa sem fim de hypes para se inteirar e participar. Correndo o risco de usar a palavra desgastada “lúdico”, tenho pensando em maneiras de blindar momentos desta natureza, destinados tão somente ao lazer. Pelo direito de fazer brownie despretensiosamente, ouvir um álbum antigo que ninguém dá a mínima e fazer um bordado ruim o suficiente para não virar post no Instagram.
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CAMILA quer voltar a brincar de pesquisa
Bicho-colecionador
por Barbara Heckler
Guardo revistas com matérias minhas publicadas, em priscas eras. Empilhadas, ficam num canto do meu escritório, posicionadas de frente a minha mesa, então, hora ou outra, me sento no chão e começo a folheá-las. Numa dessas, me deparei com uma das reportagens mais interessantes que já fiz. O tema era colecionadores e havia um desejo do editor, Décio Galina, de conseguir três nomes importantes: Pedro Corrêa do Lago, Ricardo Cravo Albin e Rubens Ewald Filho. Ao acioná-los, grata foi minha surpresa, que logo toparam. Até o Décio ficou admirado. Mas o que percebi, logo de início, é que esse tipo de pessoa tem tanto amor por aquilo que coleciona, que ter alguém para escutá-la é quase um presente. É um novo ouvido para derramar sua paixão, que fica no limite entre uma atividade prazerosa e profissão. Rubens, talvez o mais famoso dos três, tinha cadernos em que anotava todos os filmes que assistia e, não à toa, se tornou crítico de cinema. Eram mais de 34 mil obras. Dentre elas, sua favorita era “Fellini - 8 e ½”, pela maestria do cineasta italiano em ser “o primeiro a não explicar ao espectador o que está acontecendo”, contou o cinéfilo à época para mim. Já Ricardo é um dos maiores especialistas em MPB do país, tanto que criou um dicionário sobre o tema que carrega seu sobrenome. O interesse começou com um primeiro vinil, “Asa Branca”, de Luiz Gonzaga, aos 12 anos. De adolescente a adulto, o que era um hobby foi crescendo a ponto de Cravo Albin passar a ganhar relíquias, como uma sanfona das próprias mãos do Rei do Baião. Sua casa já não dava mais conta de tanta coisa e resolveu criar um instituto homônimo, onde mantém mais de 30 mil discos, cerca de 400 objetos raros, como vitrolas, rádios, microfones, além de 2 mil fitas em rolo e outros tantos artefatos relacionados à música - um poço de diversão para pesquisadoras, diga-se de passagem. Porém, dos três entrevistados, Pedro foi o que mais me deixou boquiaberta. Numa casa com pouca iluminação, antiga, paredes e mais paredes eram forradas com livros. Em uma das salas, arquivos de metal anti fogo guardavam impressionantes TRINTA MIL manuscritos. Existia, por exemplo, um papel escrito de próprio punho por Machado de Assis, com suas correções de um conto, o que o deixava com uma vivacidade não alcançada em tempos de computador. Era a própria letra do Machado ali, na minha frente! Diante da minha empolgação em relação à sua coleção, o bibliófilo pediu para eu esperar. Foi até uma gaveta, pegou um grande papel de seda, colocou delicadamente em cima da mesa e o abriu. Era um documento, em pele de animal, do século 12 (!), que pertenceu ao Papa Alexandre III. Fiquei chocada. Pedro se tornou um dos maiores colecionadores particulares do mundo e tudo porque, aos 13 anos, juntou sua modesta mesada e adquiriu uma carta do pintor francês Édouard Manet, por U$5. Descobriu que essa era uma forma de se ligar a figuras do passado, que tanto admirava. Eu não parava de achar tudo aquilo incrível e, ao final, meu entrevistado alertou com um sorriso: "Percebi que você tem aí dentro o vírus do colecionismo também. Quando entra em você, não sai mais, cuidado, eihn?!”. Já guardo minhas revistas, agendas e CDs antigos, Pedro, nem me arrisco a entrar nesse hobby doido. Vou usar minha máscara e ficar observando de longe, para o bicho não pegar de vez.
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BARBARA é pesquisadora e flerta com coleções. Se você tiver alguma, me conta?
Raquel Lemos é sócia fundadora do escritório Lemos Consultoria Ltda. e Art.is Cultural. Advogada pós-graduada em Direito Civil e especializada em Direito Digital e das Telecomunicações pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Consultora especializada em contratos e estratégia negocial com sólida experiência em entretenimento, economia criativa e mídias digitais. Foi docente titular nos cursos de Graduação de Análise e Sistemas de informação, Banco de Dados e Administração de Empresas com Ênfase em Tecnologia. Na sequência, professora titular dos Cursos de Pós-graduação Produção Audiovisual - projeto e negócio; Pós Graduação em Animação; Gestão da comunicação em Mídias Digitais; Roteiro de Ficção Audiovisual e Design - branding: estratégias de marcas e Pós Graduação em Governança da Internet. Atualmente é docente no Curso de Pós-graduação em produção audiovisual - projeto e negócio da FAAP.
Se fosse pra escolher uma cena da sua infância, qual seria?
Tive uma infância para lá de generosa. Sou do interior de São Paulo, então cresci com muita liberdade e espaço verde, entre árvores, bichos, aqueles longos almoços de domingo em família - avós, tios e tias, primas correndo para lá e pra cá numa varanda perfumada de café coado. Mas, uma cena que representa essa infância, certamente estou ao lado das minhas irmãs, mochila nas costas com garrafa d'água, walkie talkie infantil e nossas pequenas (e malucas!) expedições que duravam tardes inteiras pelas trilhas da fazenda. Um tesouro da minha infância. Até hoje, em dias de muita exigência profissional volto a habitar essas trilhas afetivas.
Qual seu personagem favorito de um livro, filme ou série?
Não tenho um personagem, tenho um livro todo, com frase tatuada na nuca: "Grande Sertão: Veredas". Riobaldo ali com seus amores, lutas e medos. Um livro jornada. Nem vou me atrever a resenha porque Guimarães Rosa, mestre na arte, não merece esse descuido.
A vida é muito curta para…
Muito curta para essa potência de amar que carregamos. Sinto que a gente usa pouco esse espaço-tempo, somos pouco preparados para esse exercício diário. Amar é uma tarefa trabalhosa porque exige recriar, a todo tempo, a sua relação com as pessoas, com as coisas que te cercam, aromas e escolhas. Sempre pensei: ah se pudesse amar um bocadinho mais hoje, só uma porção a mais. Temos uma afetividade tão rasteira, tão pobre que consideramos que a afetividade é um dever do outro. É preciso tempo para essa percepção aguçar dentro da gente, ganhar presença.
Quem é a pessoa que mais te interessa no momento?
Olha, acho que é o território que mais me interessa no momento e ele é meu corpo. Pode ser essa a resposta? Atravessamos um tempo de intensa atividade intelectual e, num determinado momento, realizamos esse divórcio entre o corpo e a mente. Aos 42 anos, sou observadora atenta do meu corpo, este ancião que tem todas as respostas, que sente a presença (boa ou exaustiva do outro ou de determinada situação), os recados e mensagens nos dias de fadiga ou o passeio das emoções dentro da gente. Estou muito interessada neste corpo que me empresta o vestir diário, me interessa respeitar mais, ouvir mais seus sinais ou os limites que foram esgarçados. Sempre acreditei que o território mais desconhecido é o de dentro, então, abrir um sopro para meu corpo depois dos quarenta anos tem sido mágico, interessar-me por ele de forma generosa e atenta.
O que sua profissão diz sobre você?
Diz muito sobre as relações que construí através dela. Atuar como advogada no entretenimento é como se diariamente um executivo me contratasse com a seguinte frase: "entra, por favor e repare na bagunça". Esse é meu fazer diário, ordenar e criar estratégias negociais e contratuais para um ambiente mais saudável, por relações profissionais e uma cadeia de fornecedores com caminhos mais equilibrados na produção audiovisual. Então, creio que minha profissão diz muito sobre essa mulher que acredita num lugar de conciliação e mais equilíbrio das relações dentro do cinema e da publicidade. Diz também sobre essa mulher que não acredita em muralhas nas relações profissionais - o que estou fazendo me mostra? é parte de mim? é coerente? Se sim, aquilo diz sobre você e não o seu cargo, parceiro de trabalho, chefe ou liderança. Trago minha profissão como um lugar precioso e de constante aprendizado. Uma escola bilíngue - como manter minha autoralidade e autenticidade nos desafios que o mundo dos "negócios" me impõe? Todos os dias faço esse trio de perguntas, feito reza: o que estou fazendo me mostra? é parte de mim? é coerente?
O que você acha que está fazendo aqui, no mundo?
Não faço ideia e especulo pouco. Uma missão? Uma vocação? Não acredito neste lugar de destinação, porque somos muitos, inconstantes e vulneráveis aos nossos desejos. Seria bacana assumir que estou aqui para transformação diária (e manutenção também).
CAMILA: Quais seus três hobbies favoritos hoje e o que eles dizem sobre você?
Ah, tempo em família com o café da tarde, um bolo caseiro na mesa e aquela toalha de crochê que de tão velhinha e esgarçada o ponto do crochê fica para cima, sabe? Depois disso é investir tempo com os bons amigos que o cinema me deu e ouvir LP's aqui em casa. Às vezes, a gente consegue juntar tudo. Família e discos na vitrola ou Amigos e discos na vitrola. Não há cura melhor.
BARBARA: Você tem um Fusca. Por que esse carro tem o poder de atrair o afeto das pessoas?
Ah, comprei Madalena - o Fusca na cor amarelo imperial, 1972 - de um grande amigo do mercado da música. Ele é colecionador de carros e passou anos escolhendo cada peça, garimpando para manter a originalidade desta cinquentona (o Fusca, eu ainda estou no caminho para meus cinquenta...). Era um desejo antigo, desejo dessa simplicidade, do barulho do motor que é inconfundível, da autenticidade, daquilo que foi produzido - mas é limitado em tiragens. Um capricho de meia idade que me pareceu mais atraente que botox ou preenchimento labial, ocupar a alma com uma farra infantil, talvez. Mas, Madalena atrai mesmo, é impressionante! O Fusca atrai. Fico ainda surpresa, porque em todos os semáforos as pessoas falam comigo, elogiam e perguntam o ano de fabricação da Madalena. Acho que ele provoca esse lado lúdico e brincante, uma paixão que atravessa o tempo desde 1950. Tudo que é afeto ou afetivo atrai as pessoas.