Ultraprocessados, uma epopéia
Do Guia Alimentar para a População Brasileira ao encarte do supermercado Mundial
Frequentemente paro e penso no que comer bem e comer mal querem verdadeiramente dizer. Depende muito de quem, de quando, de que lugar estamos falando. No Brasil do século 21, por exemplo, comer bem é ter acesso à alimentação variada, equilibrada, dinâmica, colorida e culturalmente adequada. Baseada no ingrediente in natura, já que temos clima e espaço de sobra para isso. Comer mal, entretanto, abre uma frente dúbia e ampla de possibilidades: pode significar comer em quantidade insuficiente ou pouco adequada, mas não só. Pode ser comer em abundância, mas ainda assim, de maneira deficiente, padronizada. Num país profundamente desigual como o nosso, contraditoriamente fértil e famélico, o acesso à alimentação de qualidade ainda é um privilégio de poucos. Nesse lugar que abastece o mundo, pobreza e problemas de saúde ligados intimamente à má alimentação articulam um paradoxo tenaz. Ninguém come mal porque quer. Come mal porque é o que dá.
Publicada no ano passado, uma reportagem da revista Piauí falou dessa espécie oculta de fome que se espalhava entre a população mais pobre do país, a partir de uma cidadezinha no interior do Maranhão. Se em algumas casas faltava o que comer, em outras havia comida — mas ultraprocessada. Produtos lotados de aditivos, nada balanceados do ponto de vista nutricional, a anos-luz de distância do alimento fresco (hortaliças, frutas e legumes) ou minimamente processado (grãos, sementes, leguminosas, carnes). Diante do preço crescente dos alimentos, o centro das refeições de uma das famílias entrevistadas pela jornalista Camille Lichotti tinha virado a salsicha. Quando o filho mais novo caiu no hospital nauseado, não pela primeira vez, a médica foi categórica: o menino tinha que parar de comer besteira porque estava doente de comida. Na altura em que foi feita a reportagem, Silvana Freitas, de 32 anos, sustentava a si e aos dois filhos com os 400 reais do Auxílio Brasil. Frutas, legumes e verduras, só quando sobrava. Mas nunca sobrava.
Como julgar? Num país onde tanta gente passa fome ou está em situação de insegurança alimentar, sem saber se vai conseguir tomar café, almoçar e jantar? Muitas vezes, quando se consegue comprar os ingredientes, falta dinheiro para o gás e não se pode cozinhá-los. O aumento do preço do gás costuma acompanhar os registros de acidentes domésticos causados por queimaduras com combustíveis alternativos, como o álcool, comprado em garrafas PET, nos postos de gasolina. Em outros casos, para mulheres que chefiam famílias inteiras e se desdobram em mil para dar conta de tudo, sequer sobra tempo de encostar a barriga no fogão. Apelam para o alimento mais pronto possível, por comida rápida na rua ou em trânsito, que seja conveniente, saciante, barata e expressa. Por sobrevivência, é natural, o Brasil mais pobre passa a viver à base de biscoitos, lanches, embutidos e outras criações e disfarces da indústria, e de pouca ou nenhuma comida de verdade.
O Guia Alimentar para a População Brasileira é um documento oficial do Ministério da Saúde que tem como objetivo promover práticas alimentares saudáveis e sustentáveis. No bojo do seu farto conteúdo, publicado originalmente em 2006 e editado em 2014, fica claro o papel ameaçador dos produtos ultraprocessados e da grande indústria no panorama alimentar do brasileiro médio. Material gratuito e destinado à população, escrito em linguagem informal, o guia aborda aspectos sócio-culturais para propor diretrizes de uma alimentação baseada em alimentos frescos e minimamente processados, reforçando a relação indissociável entre a ideia de alimentação adequada e um sistema alimentar sustentável também nos campos social e ambiental. Entre tantos exemplos, o guia põe em pauta reflexões necessárias sobre os modelos de produção de alimentos e alerta sobre o consumo excessivo de gorduras, sal, açúcar e carne vermelha. Reúne elementos importantes de educação alimentar (como escolher, conservar e preparar o que se come), marcando categoricamente que alimentos ultraprocessados devem ser evitados porque apresentam, comprovadamente, riscos à saúde do corpo e do planeta. Primeiro passo dado — informação.
Estão perdendo força sistemas alimentares centrados na agricultura familiar, em técnicas tradicionais e eficazes de cultivo e manejo do solo, no uso intenso de mão de obra, no cultivo consorciado de vários alimentos combinado à criação de animais, no processamento mínimo dos alimentos realizado pelos próprios agricultores ou por indústrias locais e em uma rede de distribuição de grande capilaridade integrada por mercados, feiras e pequenos comerciantes. No lugar, surgem sistemas alimentares que operam baseados em monoculturas que fornecem matérias-primas para a produção de alimentos ultraprocessados ou para rações usadas na criação intensiva de animais.
— Guia Alimentar para a População Brasileira, Ministério da Saúde, editado em 2014
Parte do lobby sujo da indústria de alimentos, prima-irmã do agronegócio, o governo Bolsonaro pediu, em 2020, a revisão completa do guia, referência internacional, criticando seu embasamento científico. Numa pífia nota técnica, afirmaram, entre outras coisas, que era incoerente dizer que ultraprocessados não tinham equilíbrio nutricional, e que desencorajar seu consumo era tirar autonomia alimentar do povo — como se tentar proteger a saúde da nação fosse um tipo de censura. Disseram também que muitos desses produtos eram, na verdade, feitos pela indústria de forma muito semelhante às preparações culinárias caseiras. Fiquei pensando se algum deles teria hidroxitolueno butilado, maltodextrina ou corante amarelo crepúsculo na despensa.
Carregado de ironia, um episódio do Prato Cheio, podcast do portal de jornalismo investigativo O Joio e o Trigo, divulgou áudios vazados de uma reunião de marketing sobre um novo biscoito que seria lançado no mercado. Na conversa constrangedora que desvela a má fé por trás das artimanhas da indústria de alimentos, fica cristalino o modo como, para eles, o povo é massa de manobra. Fazem de tudo para dissuadir-nos de perceber a dura verdade que suas embalagens guardam: produtos maquiados e hipercalóricos, feitos da maneira mais barata possível, para lucrar o máximo possível. Lembram de quando surgiu o suco de laranja de caixa com gominhos? Mais uma tentativa desesperada de trapacear, fazendo-nos acreditar que um suco industrializado seria praticamente igual àquele espremido direto da fruta.
Há uma psicologia complexa por trás dos grandes supermercados, onde frutas e legumes estão sempre expostos na entrada para aliviarem a cabeça da culpa que mora nas profudezas da loja. É fácil escorregar nas cascas de banana que estudam nosso comportamento para manipulá-lo; difícil é lapidar nosso pensamento crítico com tanta investida em cegá-lo. No dia em que escrevo esse texto, no encarte do Mundial, supermercado popular do Rio, um litro de suco de caixa custa pouco mais de R$3. Digo suco pela força do hábito (talvez moldado pela própria indústria), porque trata-se, na verdade, de uma bebida de fruta, já que leva mais açúcar que concentrado de fruta entre os mais de 10 ingredientes. De suco mesmo só tem 10%. Páginas adiante, a versão mais natural de todas, o suco integral de maçã, é vendido em garrafa de vidro por quase R$15. O orgânico, a R$25. Contraponto, o envelope que faz 2 litros de refresco de laranja custa menos de R$1. A conta não fecha sem que muita gente saia perdendo.
Nas páginas atraentes com fotos de Milton Cunha, comentarista de carnaval, o assunto quente do mês, abundam anúncios de bebidas isotônicas e energéticas, biscoitos recheados, salgadinhos, sopas em pó e uma profusão de molhos, achocolatados, cereais matinais, todos altamente industrializados, muito mais baratos que arrozes, feijões, carnes e castanhas. Sem importância ou grande interesse comercial, frutas, legumes e verduras frescos sequer fazem parte do folheto. Não há qualquer menção aos produtos da estação, nada de promoção no preço das cenouras, zero incentivo para o consumo de couves, chuchus e repolhos. O que pretende um catálogo de produtos que exclui esses alimentos, senão incentivar o consumo ostensivo de ultraprocessados?
A influência da indústria de alimentos é tão poderosa que conseguiu plantar paradigmas onde não havia. Fez com que acreditássemos que pão de forma fosse pão, não o de fermentação natural, hoje distante da maioria dos brasileiros. Que peito de peru era saudável quando não passa de uma massaroca, versão enfeitada da salsicha, com dezenas de ingredientes de nome complicado na lista. Conseguiu que achássemos que margarina fazia bem pro coração e que os cafés de supermercado, extrafortes, escuros e amargos, eram o verdadeiro café. O angu desandou: tudo parece o que não é.
Alimentos ultraprocessados não fazem mal só à saúde e ao meio ambiente, mas também minam silenciosamente a cultura e sociabilidade de um povo. Atrelados a uma ideia de praticidade, muitos desses produtos entram no receituário das casas que até poderiam recorrer às preparações mais lentas e naturais, mas se fidelizaram àquele atalho, no modo automático. Horas de preparo, conversa, causos e costumes convertidos num saquinho dissolvido no peso frívolo de meio minuto. De um almoço de família que antes contava com a participação de todos, agora só participa o microondas, enquanto todo mundo fica vidrado na tela do seu próprio celular.
Ao mesmo tempo, falar da possibilidade de escolher o que se vai comer ainda é uma ideia murada de privilégios. Como pesar na balança o jeito como o alimento é produzido quando não se sabe o que vai comer naquele dia? A luta por sobrevivência muitas vezes é mais urgente que aquela pela alimentação ideal. Para a maioria dos brasileiros, simplesmente não se pode escolher entre o que é mais saudável. Há de se escolher o que se possa comprar, a água mais fácil para apagar o incêndio da fome. Por tudo isso, inevitavelmente, alimentos ultraprocessados fazem parte da identidade de muitas cozinhas, e é preciso ter cuidado ao mexer nesse baú.
Salgados seguem sendo salgados, pão com mortadela continua representando uma fatia do país, mas não devem ser a base da rotina alimentar de ninguém. Gosto de cachorro-quente, sigo honrando o ofício de quem vive de vendê-los nas ruas, mas é imperativo e responsável seguir regando essa discussão. E se é preciso ter muita cautela ao exaltar certas práticas alimentares, vale o mesmo ao olhar com preconceito para outras. Bruna Miranda, leitora querida dessa newsletter, piauiense professora de gastronomia e devota da boa cozinha caseira, um dia me contou do bolo favorito de sua infância, que levava Fanta laranja na receita, e ainda se comia tomando guaraná Mascote. Como negar que são parte da realidade e cultura de um tempo-lugar? Que anos atrás, produtos assim também eram um signo de novidade, status e fartura? Há muitas receitas brasileiras que têm no seu segredo o creme de cebola Maggi. Já vi cozinheiros muito hábeis se orgulharem de uma receita que leva um cubo de caldo artificial de legumes. Como dizer que a cozinha que fazem vale menos?
Não é fácil romper com o pacto da indústria que nos faz de fantoche, aprofundando o fosso indigno da pobreza pela perpetuação da má alimentação. A luta tem várias faces, e vai principalmente contra o próprio sistema político e financeiro que onera pequenos e médios produtores de alimentos e incentiva os peixes grandes. Na esfera pessoal, há caminhos importantes para quem quiser e, principalmente, puder mudar. Buscar consumir o máximo possível de alimentos in natura, lembrando que não há caixa melhor que a própria casca, é a regra de ouro. Cozinhar mais, sabendo o que exatamente se põe dentro da nossa panela, é um superpoder.
Cobrando do Estado comida saudável na merenda escolar, políticas ainda mais severas de rotulagem, reduções nos preços dos alimentos vivos e movimentos como a recente recriação do Consea, o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional. Diminuindo o desperdício, expandindo a consciência e virando a chave do reaproveitamento, não deixando que nada vá para o lixo sem que antes passe por uma boa dose de pensamento e criatividade. Seguir cozinhando e falando sobre a polivalência do ato de cozinhar e de comer como formas valiosas de se relacionar com o alimento e com o entorno. Como um modo de dar continuidade a um sistema possível de alimentação.
Seguimos adoecendo e morrendo pelo excesso e pela escassez! E assim seguiremos por mais um tempo! Temos MUITO trabalho pela frente!