#22 O que é Memória
“Somos aquilo que recordamos ou que, de um modo ou de outro, resolvemos esquecer..."
Este assunto foi abordado no episódio abaixo:
Memória é a capacidade de codificar, armazenar e evocar experiências, impressões e fatos.
A memória forma nossa identidade, quem nós somos. Quando acolhemos ou não uma experiência, estamos adicionando ou não uma camada ao nosso repertório. Trata-se de um processo complexo que não envolve somente uma área cerebral, e sim, um conjunto de elementos que a formam. Também não é um processo passivo, sendo um armazenamento de informações e a evocação fidedigna dos dados, ao contrário, é um processo ativo que sofre influência de diversos outros processos como elementos sensoriais, imaginativos e afetivos. A memória não permanece a mesma para sempre, é frequentemente reeditada sofrendo interferência das novas experiências – há um processo de recriação e reedição das memórias já armazenadas.
ETAPAS DO PROCESSO MNÊMICO
O processo de memorização é constituído de três etapas:
1ª ETAPA: CODIFICAÇÃO OU FIXAÇÃO
Captar > Adquirir > Codificar
A fixação vai depender da preservação do nível da consciência (vigilância), da atenção (especialmente da tenacidade), da sensopercepção e da capacidade de apreensão. Vários elementos vão influenciar a fixação – como a atenção, interesse, afeto, conotação emocional, caráter de novidade, associações daquilo que está vivendo com algo já vivido; É o estímulo que afeta múltiplos canais sensoriais (memória fotográfica, auditiva, etc).
Seria o equivalente à transcrição do livro em papel para o arquivo eletrônico.
2ª ETAPA: ARMAZENAMENTO OU CONSERVAÇÃO
Manutenção das informações que foram fixadas.
Há determinados elementos que também influenciam a capacidade de conservação de determinada memória: tempo, complexidade e organização. Quanto mais antiga for a memória mais consolidada estará e mais dificilmente será esquecida. Assim como memórias mais complexas serão esquecidas antes de informações simples. (Lei de Ribot) - comum que pacientes com Alzheimer tenham lembranças da infância, juventude – mas não lembrem do que comeram no café da manhã.
Seria o equivalente a classificação do tipo de memória numa pasta especifica.
»» Lei de Ribot
O indivíduo que sofre uma lesão ou doença cerebral que afete os mecanismos de codificação, armazenamento e recordação segue algumas regularidades:
Perdem primeiro a capacidade de relembrar episódios recentes para depois os mais antigos.
Perde primeiro elementos mais complexos e depois mais simples.
Perde primeiro os elementos mais estranhos, menos habituais e só depois, os familiares.
3ª ETAPA: ARMAZENAMENTO OU CONSERVAÇÃO
Retorno, espontâneo ou voluntário, à consciência das informações armazenadas.
Cada vez que a memória é evocada, é reconstruída e a cada vez que é reconstruída pode ter novos elementos – baseado na experiência que está vivendo naquele momento ou que emoções estão envolvidas. Por isso que as memórias mudam. O afeto influencia muito na evocação - em regra esquecemos mais facilmente do que nos desagrada ou angustia.
Seria o equivalente a acessar o livro na estante e ter acesso a sua leitura.
Esse é o princípio básico da terapia – evocar evento, uma lembrança e reformular o afeto relacionado a ela. Por isso que o trabalho de terapia funciona – reconstrói o afeto relacionado a lembrança. Se fosse a mesma coisa sempre, com o mesmo afeto e a mesmas sensações não teria o porquê evocá-lo. A importância de evocá-lo é justamente conseguir alterar, ressignificar o afeto envolvido à aquele acontecimento / evento.
FATORES QUE INFLUENCIAM NA MEMORIZAÇÃO
Nível de consciência: estar desperto, descansado e calmo.
Atenção focada: manutenção da atenção concentrada sobre o conteúdo novo.
Organização e distribuição temporal: a memorização de novas informações distribuídas no período de tempo é mais eficaz. Pouco e sempre > ‘muito e rápido'
Interesse: relacionado ao querer aprender, à motivação e afetividade.
Conhecimento prévio: a informação prévia ajuda na assimilação de um novo conteúdo.
Capacidade de compreensão do significado da informação: é importante que se entenda o significado daquilo que está sendo absorvido.
Contexto rico e elaborado
Codificação da informação em várias vias: quanto maior o número de canais sensoriais que a informação nova está sendo absorvida melhor sua fixação – assistir uma aula + escrever / ler + escrever.
DURAÇÃO DA MEMÓRIA:
SENSORIAL
Retida por até 1 segundo. Essas memórias são ricas de conteúdo pois absorvem os diversos estímulos do ambiente, porém muito breves, se apagam rapidamente. De modo geral, é onde, de modo não consciente, escolhemos para onde voltaremos nossa atenção.
IMEDIATA
Retida por 1 a 3 minutos. Capacidade de reter material imediatamente após ter sido exposto (palavras, imagens, sons). Ela é muito dependente do nível de concentração, fadigabilidade e de certo treino. A estrutura cerebral envolvida é a Área pré-frontal. Exemplo. preço de algo; número de telefone.
RECENTE OU CURTO PRAZO
Retida por 3 a 6 horas. Guarda-se por um tempo, normalmente para algo que precisa ser feito ou lembrado e depois some. As estruturas cerebrais envolvidas são as áreas mediais dos lobos temporais.
LONGO PRAZO
Retido por dias, meses e anos. Organismo tem capacidade quase ilimitada de armazenamento de informações à longo prazo. As informações armazenadas neste tipo de memoria tem uma estrutura organizacional de acordo com o significado, e redes semânticas, as quais arquivos semelhantes (ou semanticamente relacionados) ficam vinculados. A estrutura cerebral: Hipocampo na transferência da memoria recente para memoria de longo prazo. Para o armazenamento, áreas corticais em todos os lobos cerebrais.
CARACTERÍSTICAS DA MEMÓRIA
PSICOLÓGICA
Também conhecida como cognitiva ou neuropsicológica, é a atividade de codificar, conservar e evocar os dados experenciados.
GENÉTICA
Conteúdo de informações biológicas adquiridos ao longo da história filogenética da espécie e contido no material biológico – RNA, DNA, Cromossomos, e mitocôndrias.
IMUNOLÓGICA
Informações registradas e recuperáveis pelo sistema imune.
COLETIVA, SOCIAL OU CULTURAL
Conhecimentos e praticas culturais e sociais produzidos, acumulados e mantidos por um determinado grupo social. Como costumes, valores, praticas, linguagens, conceitos, ideologias, rituais, símbolos.
CARÁTER (IN)CONSCIENTE DA MEMÓRIA
EXPLÍCITA
Refere-se ao conhecimento consciente obtido com algum esforço para evocá-lo. Imagens visuais, palavras, conceitos ou situações.
Ex. O que conversei com minha esposa ontem;
IMPLÍCITA
Automática e espontânea. Conhecimento adquirido e evocado sem esforço. Está envolvida também no que chamamos de ‘sensação de ser familiar’, quando vemos alguém que nos parece familiar mas não conseguimos identificar de pronto de onde seja.
Ex. Dirigir o carro para casa escutando uma música que nos lembre algum momento da vida, ficamos absortos naquela lembrança e continuamos dirigindo, parando nos sinais, fazendo o trajeto correto mesmo sem nos darmos conta. Ou sermos influenciados por uma propaganda.
» PRIMING » é um tipo de memória implícita, importante no processo de recordação. Estímulos que já foram mostrados, expostos anteriormente, são melhor elaborados do que aqueles totalmente novos. Isso explica porque encontramos uma maçã mais rapidamente entre outros objetos quando ela já foi exposta anteriormente (priming perceptivo). Ou quando um músico, depois de escutar dois ou três acordes de uma canção aparentemente esquecida, consegue se lembrar e tocar toda a melodia (priming categorial).
» DEVANEIOS » Relacionada com a memória implícita e explícita. É quando estamos extremamente relaxados e soltamos a mente relembrando e construindo histórias.
TIPOS DE MEMÓRIA X ESTRUTURA CEREBRAL
MEMÓRIA DE TRABALHO
Une as habilidades de atenção e memoria imediata. É uma memória ativa, plenamente consciente.
Regiões cerebrais envolvidas são regiões corticais pré-frontais.
Apresentam alterações da memória de trabalho: Demências: frontotemporal (DFT); Alzheimer; Vasculares e corpos de Lewy; Esclerose Múltipla; Esquizofrenia; TDAH; TOC; No envelhecimento normal a memória de trabalho também é afetada.
Exemplos de memória de trabalho são: (1) ouvir um número de telefone, retê-lo durante alguns segundos para em seguida, discá-lo; (2) perguntar um trajeto na rua, receber as instruções verbais e realizar o comando em seguida.
MEMÓRIA EPISÓDICA
Memória explicita de médio e longo prazo relacionada a eventos ocorridos – específicos e concretos relacionados a história autobiográfica do indivíduo, é a recordação de fatos reais.
Esta memória está relacionada aos mecanismos das regiões cerebrais: face medial dos lobos temporais- hipocampo e córtices entorrinal e perirrinal.
As perdas de memória episódica ocorrem: Transtornos neurocognitivos, principalmente na demência de Alzheimer (forma lenta e progressiva); Síndrome de Wernicke-Korsakoff – prejuízo marcante; Esquizofrenia; Transtorno Dissociativo; Doença de Parkinson.
MEMÓRIA SEMÂNTICA
Capacidade de nomeação e categorização. Representação de longo prazo dos conhecimentos gerais que temos sobre o mundo – significado de palavras, objetos e ações. De modo geral é compartilhada socialmente e reforçada constantemente, não havendo uma marcação temporal.
Regiões cerebrais envolvidas: regiões inferiores e laterais dos lobos temporais.
Alterações da memória semântica: Demência de Alzheimer – quando há deterioração acentuada nos lobos temporais; Demência frontotemporal (DFT) – dificuldade nas tarefas de nomeação e compreensão de palavras isoladas.
MEMÓRIA DE PROCEDIMENTO
Memória automática, não consciente – habilidades motoras, perceptuais e visuoespaciais. Quando o aprendizado está bem consolidado é implícita, porém, durante o aprendizado, para conseguir que seja fixado, é explicita e declarativa.
Regiões cerebrais envolvidas: lobros frontais e cerebelo.
Alterações da memória de procedimento: Doença de Parkinson – é causa mais frequente para perda da memória de procedimentos; Doença de Huntington; Tumores e AVCs podem afetar também este tipo de memória.
Ex. quando se está aprendendo a dirigir, nas primeiras vezes precisa lembrar qual é o pedal do freio, da embreagem e do acelerador, olhar as marchas – porém, quando já está com o aprendizado fixado, o conhecimento e a direção tornam-se “automáticos”.
ALTERAÇÕES QUANTITATIVAS DA MEMÓRIA
É necessário que se esmiúce o tipo de problema de memória que a pessoa queixa. A queixa simples “perda de memória” não nos diz nada. É necessário que se detalhe o tipo, a forma que se apresenta.
QUANTO À INTENSIDADE
HIPERMNÉSIA
Capacidade de lembrar com mais intensidade e por mais tempo uma vivência – com altíssimo grau de detalhes das coisas, fatos, eventos de muitos anos. Pacientes com ataques de pânico são capazes de lembrar com muita clareza do que aconteceu antes e durante o ataque do que qualquer outro evento que aconteça em sua vida. Nos quadros de mania e hipomania é comum que se apresente como uma aceleração geral do ritmo psíquico, com uma explosão de informações – maior intensidade porém, com menor clareza.
HIPOMNÉSIA OU AMNÉSIA
Redução da intensidade – perda parcial ou total de eventos, informações da vida, tanto da capacidade de fixar quanto de manter e captar.
» Amnésia Psicogênicas ou dissociativas refere-se a perda de elementos seletivos, com valor psicológico significativo, simbólico ou afetivo. Pode surgir em sequência a um episódio de trauma emocional.
» Amnésia Orgânica refere-se a perda de memória e é menos seletiva que a anterior, ocorre devido a deterioração cerebral – demências. Normalmente o material mais recente é perdido antes dos mais antigos (Lei de Robot).
QUANTO AO TEMPO (AMNÉSIAS)
ANTERÓGRADA » Dificuldade de adquirir novas memórias a partir do evento que causou o dano cerebral. Bastante frequente nos transtornos neurocognitivos de base orgânica.
RETRÓGRADA » Dificuldade de lembrar das memórias anteriores, mas manter a capacidade de adquirir novas. Comum em amnésias psicogênicas, causadas por algum trauma psicológico.
RETROANTERÓGRADA » Dificuldade em ambos os processos – comum após traumas cranioencefálicos.
QUANTO A EXTENSÃO E CONTEÚDO
GENERALIZADA » Todas as memórias estão comprometidas globalmente
LACUNAR » Recorte no tempo – naquele dia não lembra do que aconteceu
SELETIVA » Não lembra de determinada situação, evento, uma qualidade de estímulo específico.
ALTERAÇÕES QUALITATIVAS DA MEMÓRIA
As alterações qualitativas são deformações do processo de evocação da memória.
ILUSÕES MNÊMICAS (= ALOMNÉSIA)
Um evento que de fato aconteceu, mas na evocação é distorcido – a lembrança é diferente do que realmente aconteceu. São acréscimos inexistentes de elementos falsos “falsa memória” – distorções absurdas. Pacientes maníacos normalmente trazem a lembrança de forma mais grandiosa assim como pacientes deprimidos que evocam eventos da sua vida de forma mais negativa, desfavorável do que de fato aconteceu. Ex. um paciente chegar e dizer que tem 18 filhos (quando tem 2) é um exagero marcante. Podem ocorrer na esquizofrenia, no transtorno delirante e menos frequente em transtornos de personalidade.
ALUCINAÇÃO MNÊMICA (= PARAMNÉSIA)
Criação de uma memória – comum em quadros psicóticos – nenhum evento se assemelha aquela lembrança, ao evento que está sendo descrito.
CONFABULAÇÕES
Relatos involuntariamente incongruentes com a história de vida do indivíduo. A pessoa não reconhece a falsidade em seu relato e em sua lembrança, parece plausível. É mais difícil de desconfiar do relato no primeiro momento, somente com acompanhamento para verificar que a história não bate. Ocorrem principalmente na síndrome de Wernicke-Korsakoff – frequentemente secundária ao alcoolismo crônico. Ex. Chegou e disse que foi casado e teve 2 filhos (não sendo verdade).
CRIPTOMNÉSIA (PLÁGIO INVOLUNTÁRIO)
Uma lembrança que não é reconhecida como lembrança e o paciente acha que foi sua ideia original. Plágio Involuntário - a pessoa tem uma referência (leu, viu ou escutou algo), esqueceu que aquilo fez parte de seu repertório e evoca a memória, mas não o identifica como memória, acha que é original, uma nova ideia. Comum em pacientes com Alzheimer que relatam uma história a um grupo de pessoas como inteiramente nova, sendo que foi relatada há poucos minutos por outra pessoa.
ECMNÉSIA
Identificar como presente algo que já viveu no passado. Está associada a “EQM – Experiencia quase morte” – onde os indivíduos relatam ver sua vida passar como um filme.
ALTERAÇÕES DE MEMÓRIA NOS TRANSTORNOS
» TRANSTORNOS DEPRESSIVOS
Hipomnésia de fixação e de evocação,
Hipermnésia seletiva em eventos geradores de culpa.
Alomnésias - distorções em direção à ruína e tristeza
» TRANSTORNO BIPOLAR - EPISÓDIO MANÍACO
Hipermnésia de evocação
Hipomnésia de fixação
Alomnésias - ideias de grandeza
Hipomnésia lacunar do período de maior agitação (a posteriori)
» ESQUIZOFRENIA
Hipomnésia de fixação
Alterações seletivas condizentes com o conteúdo delirante (aquilo que confirma o delírio é fixado de forma mais intensa),
Alomnésias
Paramnésias
» TEPT - TRANSTORNO DE ESTRESSE PÓS TRAUMÁTICO
Hipermnésia ou amnésia retrógrada lacunar: hiperlembrar ou não lembrar do momento do trauma
Ecmnésias - vivências do passado como se fosse no presente - flashbacks.
RECOMENDAÇÕES
Livro - Psicopatologia e Semiologia dos Transtornos Mentais » Paulo Dalgalarrondo