A história da administração entre a capitulação e a contradição, por Elcemir Paço Cunha
Resistir para manter a história nos currículos e o modo de lidar com ela que não lhe ponha de joelhos.
A história da administração entre a capitulação e a contradição
Por Elcemir Paço Cunha (@PacoCunha)
Pesquisadores em história da administração, envolvendo as empresas e o pensamento administrativo, com frequência ressentem-se de que o tema não seja de grande interesse dos seus estudantes. Há muitas décadas que se repete a emblemática sugestão de que a história é “geralmente negligenciada na maioria das faculdades de administração” (Wren & Bedeian, 2017, p. 3).
Não foram poucas, no entanto, as indicações sobre a importância da história da administração para a formação na área. Diante das características gerais das faculdades de administração, parece não ter sido o bastante reconhecer que a “teoria gerencial é um produto de forças históricas passadas” (Wren, 1972, p. vi) ou que a “teoria e a prática atuais de gestão são literalmente o que o passado – como recebido e interpretado pelo presente – os tornou” (Wren & Bedeian, 2017, p. 386). Os apelos minimamente científicos parecem ter tido baixa influência.
Já na década de 1980, uma mesa de debate a esse respeito na Harvard Business School deixa entrever a permanente justificação para manter o tema nos currículos. É possível perceber esse problema nas entrelinhas. Entre os presentes, estavam no debate A. Chandler e T. McCraw. Enquanto o primeiro reforçava o lugar central do estudo de caso, o segundo sugeria que a “história oferece outro modo de pensar que ajuda a ensinar às pessoas a aceitarem a ambiguidade, a estarem confortáveis com ela, e a rejeitarem fórmulas” (Kantrow, 1986, s/p.). A linha principal de justificação sempre foi a de que o estudo histórico das teorias e práticas fomentaria maior capacidade analítica dos discentes, facultando melhores decisões ao comando das empresas no presente. Vemos isso inclusive em argumento mais contemporâneo, segundo o qual os “estudos históricos e gerenciais são uma das mais importantes e ricas fontes para constituir ciência e boas práticas gerenciais” (Marshev, 2021, p. 30). A despeito disso, os estudos históricos sempre aparecem encurralados, levados à resistência para se manterem presentes nos currículos de administração de todos os níveis. E isso vale mesmo para a linha, digamos, empírico-gerencial de Wren, Bedeian, Chandler, McCraw.
Robbins (2000, p. xiv) escreveu ter percebido que os “alunos querem saber o que funciona e o que não funciona. A maioria não está interessada nos detalhes da pesquisa, na evolução histórica do nosso conhecimento ou em longos discursos sobre ideias rivais”. Esse anseio, de uma maioria, por aquilo que “funciona ou não”, entra muitas vezes em fricção com aquilo que é necessário à formação de todos. É uma constante no trabalho dos docentes nos cursos de administração — e algo constatável semelhantemente nas chamadas atividades profissionais em que o anseio não é o decisivo, em setores nos quais não há uma pura e direta relação de prestabilidade.
Todos sabem que o caráter tecnológico dado tendencialmente ao conteúdo e à forma da formação na área, também, pelo grau de proximidade com as demandas fáticas do “mundo dos negócios”, ajuda a explicar aquele anseio e variadas outras coisas presentes em tais currículos — e ausentes nele também. Um exemplo é o caso das Diretrizes Curriculares Nacionais (DCNs). O fato de que na área de economia, por exemplo, há a exigência considerável de presença da formação em história da economia e do pensamento econômico (observar artigo 5º) contrasta com o mais recente documento da administração que não registra, salvo melhor juízo, qualquer referência à história. Não pode ser acaso, pois, que comparativamente à história econômica, à história do pensamento econômico ou mesmo a história de empresas — disciplinas admitidas mais ou menos formalmente na área de economia —, os estudos históricos na área de administração sejam bem mais restritos.
Essa ausência também é constatável no nível da pós-graduação em administração. Promove-se com isso o conhecido círculo vicioso. Como não há destaque suficiente para o tema na formação de pesquisadores e futuros docentes nesse nível da formação, os quadros tornam-se precários, repetindo a ausência do tema nas graduações e assim por diante. Isso deve ser ponderado, entretanto, com o realismo de que jamais seria possível ou mesmo recomendada uma dominância dos estudos históricos nos currículos voltados, em geral, à formação de gestores. Não deixa de ser interessante, no entanto, observar que enquanto áreas como marketing, finanças etc., possuem lugar cativo, a história é com maior frequência algo no segundo ou terceiro planos das chamadas “teorias gerais da administração” ou “teoria das organizações”, a depender do nível da formação.
Aquela afirmação anterior de Robbins traz em si um problema ainda maior do que inserir, mais ou menos, história na formação. A afirmação em si, sobre o anseio por aquilo que “funciona ou não”, é uma constatação que todo professor honesto deve reconhecer. A questão é o que fazer diante disso: capitanear, simplificar, aderir às “fórmulas”? Robbins parece ter seguido essa trilha (se é que já tenha seguido de fato outra diferente). Após admitir proporcionar aquilo que é ansiado, esclareceu:
Portanto, neste livro, minimizei nomes, desenvolvimentos históricos e métodos de pesquisa. Por exemplo, em contraste com a maioria dos livros introdutórios à administração, organizei os capítulos sobre motivação e liderança (...) em torno de assuntos e não de teorias históricas. Esses capítulos enfocam assuntos atuais e baseiam-se nas teorias para esclarecer tais assuntos e fornecer aos leitores orientações práticas para aplicações. (Robbins, 2000, p. xiv)
É sempre uma adesão problemática essa, a de capitanear sem mais aos anseios, pois, como todos sabem, “funcionar ou não” depende de muitos fatores tanto quanto as aplicações práticas são contingentes às circunstâncias variantes. Para tal, ele secundarizou precisamente a explicação histórica dos assuntos tratados, incluindo as questões científicas envolvidas. É claramente um decréscimo da formação embora embale melhor o livro como mercadoria.
O caminho diferente seria insistir na história, uma vez que é também tarefa formativa em respeito ao melhor do humanismo e da ciência no reconhecimento de que as coisas mesmas são produtos históricos. Coloquemo-nos aqui ao lado das tarefas humanistas e científicas. Essa última posição traz consigo outro problema: o modo de lidar com a história. Aliás, isso ajuda a explicar seu grau de ausência nos currículos.
Aqui há, pelo menos, duas possibilidades já realizadas (e vou deliberadamente deixar para outra oportunidade a consideração dedicada à tendência pós-moderna representada pelo assim chamado “historical turn”). A primeira, é a completa exclusão ou sublimação da história ao terceiro, quarto plano nos currículos. Essa parece ser a tendência dominante, típica da anti-intelectualidade sempre presente do “homem prático” (sob a forma do gerencialismo e sua versão mais atual, o “empreendedorismo”). Existem razões para isso, como veremos.
A segunda possibilidade como maneira empírico-gerencial de lidar com a história, é sua inserção ao modo de Wren (1972), para o caso da história do pensamento administrativo, e ao de Chandler (1962), para o caso da história de empresas. Um dos limites dessa segunda possibilidade é dado por seu caráter tendencialmente apologético. Como escreveu Bowden (2020), Wren e seus amigos estiveram interessados nos grandes nomes, em suas contribuições, focalizando “indivíduos inovativos que transformam os conceitos e/ou práticas anteriores” (p. 5). Do lado da história de empresas ao modo de Chandler, Saes (2001) sugeriu que ocupa lugar central as “razões do sucesso do “grande negócio” (big business)”, de modo que a “aplicação do “modelo” de Chandler tende a produzir uma história das empresas bem-sucedidas, reproduzindo o risco que nos parece inerente a essa disciplina”. O risco, explicou, é exercitar uma espécie de “apologia da empresa e do empresário” que pode (até) ser feita de “forma até involuntária”, flertando com o “risco de uma história de empresas que “selecione” o sucesso empresarial como seu objeto de pesquisa” (p. 29).
De um lado ou de outro, o problema decorre mesmo da própria justificação mais visitada para manter a história nos currículos: melhorar as decisões hoje com base nas ocorrências passadas. Colocada essa linha em primeiro plano, a história da administração daí decorrente tenderá a exaltar grandes nomes e empresas bem-sucedidas, e a excluir a contradição, o conflito, além dos processos objetivos de uma economia capitalista que lhes dão ensejo. É uma história que assume a posição social atrelada à administração das grandes empresas e das formas de consciência ativamente associadas, uma história a serviço dessa posição. Talvez esteja até mesmo mais próxima da capitulação de Robbins do que das exigências humanistas e científicas atrás das quais nos enfileiramos.
Essa aproximação tem razões de ser. A história possui geologia instável. Tem potencial vulcânico, explosivo. A história traz em si o problema do conflito e, parece que, por isso mesmo, deve ser evitada, talvez excluída quando possível ou, quando assim não for diante das resistências que insistem em sua presença nos currículos, deve ser contida entre aparatos intelectuais mais ou menos sofisticados, ainda que apologéticos, que retirem de cena as contradições e os processos econômico-políticos que correm abaixo da superfície das mudanças estruturais das empresas, dos seus formatos, das suas práticas, das estratégias de negócios e do próprio pensamento administrativo que responde a tais contradições e processos.
Explicitar tais contradições e processos é uma terceira possibilidade, ainda que muito menos visitada. Ela remete às exigências humanistas, científicas. A tarefa então é dupla: resistir para manter a história nos currículos e o modo de lidar com ela que não lhe ponha de joelhos.
Referências
Bowden, B. (2020). Management history in the modern world: an overview. In: Bowden, B. et. al. (ed.) The Palgrave handbook of management history. Palgrave Macmillan.
Chandler, A. (1962). Strategy and structure: chapters in the history of the industrial enterprise. MIT Press.
Kantrow, A. W. 1986. Why history matters to managers. Harvard Business Review, 64 (January-February): 81-88.
Marshev, V. (2021). History of management thought: genesis and development from ancient origins to the present day. Springer.
Robbins, S. P. (2000). Managing today. 2 ed. Prentice- Hall.
Saes, F. (2021). História de empresa e história econômica do Brasil, 2021. In: Goularti Filho, A.; Saes, A. M. (Orgs.). História de empresas no Brasil. Niterói: Eduffi; São Paulo: Hucitec.
Wren, D. (1972). The evolution of management thought. The Ronald Press.
Wren, D., Bedeian, A. (2017). The evolution of management thought. 7 ed. Wiley.
Elcemir Paço Cunha é professor da Universidade Federal de Juiz de Fora (Lattes, X: @PacoCunha)