Capacidade política a propósito da "neoindustrialização", por Elcemir Paço Cunha
Depois dos anos regressivos sob a administração do Sr. Bolsonaro, descobrimos, por meio de recente levantamento, que parte da burocracia estatal, sobretudo de suas posições mais altas, mantive algum comportamento político mais resistente à sugestão golpista propalada diuturnamente por meio dos mais diversos expedientes.
Esse comportamento político não é em nada desimportante. Em termos gerais, ele pode facilitar ou obstruir certas direções a serem desenvolvidas. O peso dessa burocracia estatal pode fazer diferença nas agendas e programas propriamente ditos, inclusive por efeito das capacidades e condutas administrativas e políticas combinadas.
Para os tempos que correm, tal combinação parece estar ativada diante as pretensões do Executivo federal com respeito a uma "neoindustrialização", conforme já tangenciado neste blog.
Parte desse aparato estatal tem se mexido nessa direção. O Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços, o Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos e a Escola Nacional de Administração Pública formalizaram recentemente uma cooperação com o Institute for Innovation and Public Purpose, focalizando a inovação administrativa e a capacitação de servidores federais envolvidos com a nova política industrial. Esse Instituto tem entre seus protagonistas a economista M. Mazzucato, cujo livro Missão Economia — que repete os pontos essenciais aventados desde o difundido O Estado Empreendedor — tem servido de inspiração e orientação para essa nova política, como revela explicitamente a abordagem orientada por missão presente na RESOLUÇÃO CNDI/MDIC Nº 1, DE 6 DE JULHO DE 2023.
Na ocasião da assinatura da cooperação, a Ministra de Gestão e da Inovação em Serviços Públicos expressou assim o núcleo do esquema geral da abordagem da “missão economia”1:
“Do Governo é na verdade, para uma coisa mais ampla, como a Mariana [Mazzucato] falou, para as demandas da sociedade. Por isso, quando se organiza por missões as ideias você está pensando, que são os grandes desafios do país, é como que eu vou fazer as políticas voltadas para ele e como a gente garante que os instrumentos do Estado estejam voltados para isso também” (Parceria entre o governo brasileiro e o Instituto de Inovação e Propósito Público (IIPP/UCL)).
Não há, de fato, grandes diferenças entre o que apregoa a “missão economia” e o que já foi ventilado durante décadas sob nomenclaturas diversas. Nem destoa da lógica básica da elaboração de planos, com alvo, meios e avaliações. No fundo, trata-se da fixação de ambiciosos objetivos a serem perseguidos por meio da articulação entre o público e o privado, sob algum protagonismo coordenativo por parte do Estado, inclusive no papel de investidor produtivo. Far-se-ia frente, supostamente assim, às perspectivas minimalistas sobre o Estado e à lógica do curtoprazismo em geral.
Convenhamos que esse conteúdo não é em nada desconhecido. Em seus fundamentos, à la Mazzucato, aglutinam-se algumas tendências tais como aquelas refletidas em notórios nomes e ideias circulantes, a exemplo de Keynes (o Estado coordenador da dinâmica econômica), de Schumpeter (dinâmica que passa pelos processos de inovação), de Galbraith (tendo por finalidade o propósito público), de Polanyi (perseguido pelo Estado não apenas como regulador, mas também como criador de mercados), entre outras influências importantes, orientadas para repensar o Estado e o próprio capitalismo. Mazzucato não omite que sua “ambição [é] repensar o capitalismo repensando o Estado” (s/p) — algo repetido recentemente para a Folha.
Fica evidente que estão em jogo condições habilitadoras ao protagonismo estatal. Essas condições se mostram com apelo técnico-administrativo, envolvendo capacitação e formação do quadro de servidores, como aquele acordo de cooperação dá ensejo. Envolve também o aspecto político, uma dimensão da chamada “governança”. Para isso, a capacitação do quadro técnico tem lá seus limites. É um aspecto estruturante de maior peso relativo, difícil de ser alcançado e que transcende as possibilidades das cooperações com institutos para capacitação.
No livro que inspira as missões para a “neoindustrialização”, esse aspecto político comparece de muitos modos. Em um dos momentos fundamentais, a economista perguntou retoricamente: “Esse livro é sobre repensar o governo ou repensar o capitalismo?”. E assim procedeu à resposta:
“A resposta é ambos. Mudar o capitalismo significa mudar tanto como o governo é estruturado e como os negócios são tocados — e como as organizações públicas e privadas interrelacionam-se. A governança diretiva das estruturas das organizações e das relações entre tais organizações por meio da noção de “propósito” é a chave para a abordagem orientada por missão”. (Mazzucato, 2021, s/p)
Essa “governança” se reflete como norma orientadora, como chave da abordagem baseada em missão ou propósito (público), como registrado. Não é por acaso. Para a economista, os:
“governos devem investir no desenvolvimento de seus músculos em áreas críticas tais como a capacidade produtiva, capacidades aquisitivas, colaborações público-privadas as quais possam genuinamente servir ao interesse público (…). Sem isso, não podem sequer elaborar termos de referência sólidos para as empresas que contratam, as quais podem facilmente capturar a agenda”. (2021, s/p)
Está em tela, essencialmente e sem meias palavras, a capacidade política do Estado em disciplinar sobretudo os agentes do capital. A “governança” é colaborativa, mas sob condução diretiva do Estado, como deixa transparecer a autora. Isso já estava muito claro naquele notório O Estado Empreendedor. Lá, a economista afirmou que:
“Um Estado empreendedor não apenas “reduz os riscos” do setor privado, como antevê o espaço de risco e opera corajosa e eficientemente dentro desse espaço para fazer as coisas acontecerem. De fato, quando não se mostra confiante, o mais provável é que o Estado seja “submetido” e se curve aos interesses privados. Quando não assume um papel de liderança, o Estado se torna uma pobre contrafação do comportamento do setor privado em vez de uma alternativa real”. (Mazzucato, 2014, s/p)
Não é possível considerar no momento o caráter meio oco e evanescente que assumem categorias concretas tão importantes quanto “capitalismo” e “Estado”, nem o excesso de voluntarismo com o qual a autora mira a economia capitalista ou as tendências mistificadoras da autora sobre o Estado (“confiante”?) tomado como demiurgo da vida econômica da sociedade, tal como comparece em seus materiais mais visitados. Entretanto, é incontornável sublinhar que, retirados os disfarces verbais, o ponto chave da abordagem orientada por missão é precisamente a capacidade política no disciplinamento do capital, não se submetendo nem se curvando aos “interesses privados”, para que não se tenha a agenda enfim capturada.
Isso tem um sentido peculiar para as condições brasileiras atuais diante do “propósito” da “neoindustrialização”. Se as capacidades de atuar com a nova agenda estão em desenvolvimento por meio do aperfeiçoamento profissional do quadro técnico-administrativo, qual é a potência política de administração da economia capitalista no país, sobretudo no que toca a preponderância do comando da agenda diante dos “interesses privados” do grande capital?
É uma questão realmente complexa considerando a forma política que se desenvolveu no país, particularmente distinta de outras regiões igualmente contrastantes entre si. O histórico mais recente confirma o atribuído caráter da questão. Em levantamento recente junto à então existente Câmara da Indústria 4.0 — que mal cambaleou entre as administrações Temer-Bolsonaro — questionou-se a respeito das interferências de interesses econômicos aos representantes de sindicatos e organizações patronais que compunham aquela Câmara. Os achados sugeriram que aproximadamente 56% dos respondentes concordaram que havia, por parte de interesses econômicos, a interferência alta e média de natureza prejudicial ao andamento da política de inovação no Brasil naquele contexto.
É algo que não deixa de surpreender exatamente em razão da qualidade dos respondentes, ligados aos próprios interesses econômicos envolvidos. Uma linha de conclusão é que, naqueles curtos anos (2018-2022), não houve capacidade política de convergir e disciplinar tais interesses. Isso pode ser índice de que não se formou potência suficiente para disciplinar o capital nem mesmo tendo em vista a perseguição de seus próprios interesses coletivos vinculados à matéria da inovação tecnológica sob a rubrica da indústria 4.0. Parece ter sido capaz de não se submeter, nem de se curvar, de proteger tal agenda? Pôs-se ou não de joelhos? Historicamente, há muitas evidências de que algumas frações daqueles interesses terminam predominantes nas iniciativas governamentais do tipo, capturando a então agenda do momento, como já sublinharam comentaristas.
Em vista da nova política industrial, a denominada “neoindustrialização” emerge como agenda de destaque para a atual administração governamental. Poderíamos especular acerca de mudanças no sentido de facultar aquela capacidade diretiva, certa potência disciplinadora. Há evidências de disposição em colocar em movimento cenouras e varas. Mais cenouras do que varas, como mostram certas iniciativas tais como a depreciação acelerada por meio do financiamento da modernização industrial, a nova fase do Brasil Mais Produtivo, a Estratégia Nacional para o Desenvolvimento do Complexo Econômico-Industrial da Saúde, entre outras. Essas iniciativas, muito animadas pela abordagem orientada por missão, estão apenas no começo de seus trabalhos, é verdade. Grupos de trabalho e comissões ainda seguem em formalização. Elas ocorrem em circunstâncias tais, no entanto, em que as boas intenções contrastam com a apresentação clara de planos com alvos e medidas de avaliação. Mas essas exigências básicas não produzirão qualquer efeito se as cenouras e as varas também não funcionarem.
Ainda é cedo para prognósticos terminais. Entretanto, os mais recentes paralelos não são animadores. O recente episódio da disputa acerca do PL 2630/2020 em que saíram vitoriosas as chamadas Big Techs é algo emblemático e estarrecedor, mas não tanto pelo desfecho em si do adiamento da discussão quanto pelos meios que tais corporações empregaram à luz do dia para influenciar o seu resultado — algo sem precedentes em outros países. Se tal episódio projetar tudo aquilo que se pode esperar da potência disciplinadora diante da agenda da “neoindustrialização”, as ambições serão frustradas por mais audaciosas que possam ser por exigência de uma abordagem baseada em missão. E não há acordo de cooperação com qualquer instituto que produza a potência necessária. Resta saber como alterar esse aspecto estruturante com força para estancar, outra vez mais, até os propósitos coletivos do próprio capital.
Referências
Mazzucato, M. (2021). Mission economy: A moonshot guide to changing capitalism. Penguin UK.
Mazzucato, M. (2014). O estado empreendedor: desmascarando o mito do setor público vs. setor privado. Portfolio-Penguin.
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Os interessados em certa linha de desenvolvimento da “orientação por missões”, especialmente caracterizada no setor das inovações tecnológicas e científicas, poderia encontrar aspectos marcantes na seguinte ordem: Chiang, J. T. (1991). From ‘mission-oriented’ to ‘diffusion-oriented’ paradigm: the new trend of US industrial technology policy. Technovation, 11(6), 339-356.; Ergas, H. (1986). Does technology policy matter? in B.R. Guile and H. Brooks (eds.). Technology and Global Industry: Companies and Nations in the World Economy. National Academy Press. Washington. D.C.; e Weinberg, A.M. (1967). Reflections on Big Science. Oxford: Pergamon Press.