Guerreiro Ramos, CEPAL e a Teoria Marxista da Dependência, por Leandro Theodoro Guedes e Elcemir Paço Cunha
Numa conversa recente, publicada pelo Canal Opera Mundi (vinculado ao site), ao defender a superioridade da Teoria Marxista da Dependência (TMD) sobre o Nacional-Desenvolvimentismo de inspiração cepalina, o professor Nildo Ouriques estabeleceu Guerreiro Ramos como uma das fontes intelectuais da TMD e sugeriu alguma divergência do autor com respeito ao pensamento cepalino. Em suas palavras:
“O Partido Comunista tinha como postulado a ideia da burguesia industrial progressista. Que eles faziam? Eles faziam análise da via clássica do desenvolvimento capitalista inglês. Supunham, em consequência, que a burguesia aqui não ia assumir, sobretudo a industrial, um caráter reacionário e poderia inclusive ter um antagonismo com as frações agrárias. Muito bem, mas eles não tinham uma teoria econômica (…). O Partido Comunista nunca teve. Pode revisar todos os textos. Logo, quando a CEPAL, em 1949, através da liderança de Prebisch, lança os problemas de desenvolvimento e obstáculos ao desenvolvimento da América Latina, o estrutural-desenvolvimentismo CEPAL, o estruturalismo cepalino caiu como uma luva teoricamente para o Partido Comunista. Quer dizer, a interpretação política ganharia uma certa sustentação na teoria econômica. Ocorre que, precisamente, o que fez a teoria marxista da dependência? Ela fez a crítica ao estruturalismo cepalino. Isso foi devastador. E quem começou essa crítica não foi nem o Rui Mauro, nem o Teotônio, nem a Vânia. Foi essa genial figura, polêmica, ingovernável, que era André Gunder Frank. Ele, quando chegou na Universidade Nacional de Brasília, por convite do genial Darcy Ribeiro, fez uma crítica devastadora sobre o caráter da agricultura brasileira, que era uma pancada no Partido Comunista. [...] Ora, isso foi uma pancada, quer dizer, o mito do feudalismo na agricultura brasileira caiu por terra com Gunder Frank e teve grande influência na crítica da teoria marxista da dependência nas suas origens. As origens intelectuais da teoria marxista da dependência repousam sobre o Gunder Frank e sobre o sociólogo brasileiro mais importante de todos os tempos que é Alberto Guerreiro Ramos, que fez esse livro genial A redução sociológica e, sobretudo, um livro que devia ser obrigatório para todos nós, que seria A introdução crítica à sociologia brasileira”.
Podemos dizer que merece atenção especial a relação de Guerreiro Ramos com o marxismo e com o próprio pensamento cepalino.
É bem verdade que o sociólogo brasileiro se ocupou do problema da particularidade nacional durante grande parte de sua trajetória. Contudo, é preciso dizer que uma das vias pelas quais o vínculo com as questões nacionais se estabeleceu se identifica na própria admiração do autor pela CEPAL. Considerando a importância dada por ele ao engajamento necessário da ciência com o tratamento dos problemas do terreno econômico, o autor via na CEPAL uma exemplaridade desse engajamento:
“Sob os auspícios de um organismo com a CEPAL, realiza-se a descolonização do economista latino-americano, e a contribuição de brasileiros para esta mudança é das mais ilustres” (Ramos, 1995, p. 109).
Caracterizando a atuação da CEPAL, ressaltou que ela teria:
o propósito de tornar a política e o pensamento econômicos dos países latino-americanos fatores operativos do seu desenvolvimento. Desta maneira, ao propor soluções para os problemas de desenvolvimento, parte da consideração dos recursos disponíveis e não das conveniências e necessidades idealisticamente concebidas. Todo o esforço deste organismo internacional é o de formular os princípios de uma estratégia econômica cuja assimilação habilite o economista latinoamericano, em suas atividades de aconselhamento, a contribuir para a direção dos fatores produtivos em cada país, de modo a acelerar a sua velocidade de capitalização (Ramos, 1995, p. 131).
Esses elementos estão em Introdução Crítica à Sociologia Brasileira, texto citado pelo professor Nildo Ouriques. São elementos que em vez de apresentar uma alternativa crítica à proposta cepalina, valoriza seu veio desenvolvimentista e potencialmente sua análise da objetividade brasileira.
Outro aspecto, mais importante e que merece atenção, é a relação do sociólogo brasileiro com tendências marxistas como a TMD. Nosso sociólogo era portador de uma posição, que em nome da aceleração da acumulação capitalista no país, procurava acomodar os antagonismos internos, deslocando-os (pelo menos) teoricamente para o segundo plano:
“Os antagonismos essenciais da sociedade brasileira são atualmente os que se exprimem na polaridade, “estagnação” e “desenvolvimento”, representados por classes sociais de interesses conflitantes, e ainda “nação” e “antinação”, isto é, um processo coletivo de personalização histórica contra um processo de alienação. Outras contradições que não se enquadram nestes termos são, no momento, secundarias” (Ramos, 1996, p. 79).
Sua sociologia estava a serviço dessas pretensões. Não por acaso, renovava sua antipatia declarada, e mal-informada, a respeito de Marx. A despeito de algumas concessões e elogios protocolares aqui e ali, desenvolveu seu pensamento tomando o marxismo como adversário a ser combatido, incluindo o próprio materialismo de Marx. Alguns desses aspectos podem ser encontrados com maiores detalhes em texto recentemente publicado na Revista Verinotio, cujo conteúdo também sugere as vinculações do sociólogo com variantes irracionalistas da filosofia alemã.
Por intermédio do agnosticismo relativista herdado da filosofia existencialista e da sociologia do conhecimento, Guerreiro Ramos se colocava diretamente contrário à possibilidade de objetividade do conhecimento nos termos materialistas. Uma síntese possível para sua posição pode ser encontrada no seguinte trecho do artigo mencionado:
“Trata-se de uma variante da reação romântica às tendências afeitas à razão, embora sejam tomadas de modo embaralhado por Ramos, identificando o racionalismo puramente formal que matrizou o positivismo às superficialidades matematizadoras com a postura do marxismo, como de outras correntes, de admissão de que a realidade não apenas pode e pôde ser efetivamente conhecida como, de resto, os homens estão fadados a conhecê-la para transformá-la” (Guedes, Paço Cunha, Wescley, 2023, p. 253).
No artigo há uma coleção de indicações de que Guerreiro Ramos considerava o marxismo de Marx um messianismo político, praticante de uma dialética grosseira, linear, insuficiente diante das tendências fenomenológicas e de um “pluralismo dialético” (Gurvitch). Essa avaliação, alimentada por referenciais existencialistas (e alguns abertamente reacionários) anti-marxistas, estendeu-se até suas últimas obras dos anos de 1980. É algo que marcou as ideias do sociólogo brasileiro em sua totalidade. Diante desse posicionamento, seria interessante trazer à baila quais tributos de facto uma Teoria Marxista da Dependência teria, em sua origem, com as ideias do sociólogo brasileiro.
Há quem tenha se esforçado em conectar Guerreiro Ramos e Ruy Mauro Marini — considerado como um dos maiores expoentes da TMD — dada a relação de professor-aluno que tiveram nos idos de 1950, na então Escola Brasileira de Administração Pública (EBAP). Marini teria confessado que, naquele tempo:
“Abria-se uma nova época em minha vida. [...] Nova época, em todos os sentidos. Frente ao clima intelectual tradicionalista e rarefeito que privava na Universidade de então, a Ebap abria amplo espaço às ciências sociais e recrutava seu corpo docente na intelectualidade mais jovem, que a universidade mandarinesca excluía [...]. Figura marcante era ali Alberto Guerreiro Ramos, professor de Sociologia, crítico irreverente de tudo que cheirasse a oficialismo, eclético incorrigível, aberto a novas ideias que se originavam de Bandug e da Cepal; sua influência sobre mim, naqueles anos, foi absoluta” (Traspadini & Stedile, 2005, p. 60 apud Marini & Tenório, 2022, p. 585-586).
Essa é a única passagem apresentada, no entanto, a partir da qual alguma influência poderia ser estabelecida, pois, no mais, não restam estabelecidos conexões explícitas e probantes em termos efetivamente intelectuais de alguma influência para a TMD. No conjunto, o tom especulativo do artigo procura estabelecer nexos muito gerais e emoldurados em um fugidio “pensamento crítico”. Vale a menção de que mesmo o irracionalismo clássico, muito influente em Guerreiro Ramos, passava-se por “crítico”, dada sua primeira face de cativante rebeldia. É até desnecessário dizer que a expressão “ecletismo incorrigível” empregada por Marini guarda algo na gaveta das sutilezas. De resto, as afinidades parecem ser muito brandas, não mais do que de admiração dado o contexto daqueles anos na Ebap.
Não deixa de ser inquietante saber mais a respeito do assunto. Desempenhasse algum papel Guerreiro Ramos como uma das origens efetivamente intelectuais da TMD, não deixaria de ser irônico que o M da TMD fosse tributário de certas tendências irracionalistas às quais o sociólogo ressoou ao longo de todo o seu itinerário intelectual, tendências que tomaram o próprio marxismo como adversário a ser destruído.
Referências
Guedes, L. T., Paço Cunha, E., & Xavier, W. S. (2023). O Irracionalismo e sua Teoria do Conhecimento: Reação Agnóstico-relativista de Guerreiro Ramos ao Marxismo (1939-1955). Verinotio–Revista on-line de Filosofia e Ciências Humanas, 28(2), 232-258.
Marini, C., & Tenório, F. G. (2022). O estudo da Administração Pública e o despertar de Ruy Mauro Marini para o pensamento crítico. Cadernos EBAPE.BR, 20(5), 580–592. https://doi.org/10.1590/1679-395120220245
Ramos, A. G. Introdução crítica à sociologia brasileira. 2.ed. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 1995.