
O dentista, o jardineiro e o engenheiro na administração da economia capitalista, por Elcemir Paço Cunha
Faz pelo menos uma década que notoriamente o keynesianismo passou a ser revisitado e ressaltado entre intelectuais como alternativa ao chamado regime “neoliberal”. No contexto de seu desenvolvimento (1920-1940), o keynesianismo expressou-se como uma espécie de prolongamento ideal, cientificamente informado, voltado para a “gestão planejada da acumulação” (Medeiros, 2013, p. 277), procurando obter um “gerenciamento sistêmico” (p. 274) da lei geral da acumulação capitalista e mesmo uma espécie de “administração científica do consumo” (p. 281) destinada a antecipar e a conter as crises do capitalismo, senão evitar que a espiral negativa fosse demasiado íngreme. O economista inglês chegou a fazer uma comparação inusitada da administração da economia capitalista com a odontologia:
(…) do not let us overestimate the importance of the economic problem, or sacrifice to its supposed necessities other matters of greater and more permanent significance. It should be a matter for specialists – like dentistry. If economists could manage to get themselves thought of as humble, competent people, on a level with dentists, that would be splendid! (Keynes, 1930/2013a, p. 332)
Nesse mesmo contexto de desenvolvimento do keynesianismo, ocorria uma espécie de renovação do liberalismo como resposta à circulação das ideias marxistas, à revolução russa, ao conflito bélico e à crise de 1929, especialmente. O próprio Keynes estava imerso nesse contexto. Mais do que isso, foi um dos principais ideólogos dessa renovação. Outros agentes foram igualmente relevantes. Entre eles, são destacáveis Hayek e Popper. No conjunto, os três intelectuais estavam circunscritos naquilo que podemos denominar como “neoliberalismo histórico”.
Hayek pode parecer um antípoda a Keynes para aqueles acostumados com certo estilo de apresentação da história do pensamento econômico. De fato, não é possível negar que, além da posição antimarxista que compartilhavam, suas discordâncias animaram muito a produção intelectual do economista austríaco e serviu inclusive de arsenal na luta ocorrida no plano das ideias nos anos vindouros, sobretudo entre 1970 e 1980. Certa reação a Keynes já era visível, no entanto, no começo da década de 1930, quando o economista inglês já desfrutava de alguma audiência.
Em The trend of economic thinking, de 1933, Hayek fez muitas ressalvas ao então estágio das ciências econômicas ainda pouco desenvolvidas. Insistiu que as medidas práticas diante dos problemas econômicos, ainda que necessárias, deveriam ser consideradas com muito mais zelo diante do fato de que, seguindo von Mises, a “society is an organism and not an organisation” (Hayek, 1933, p. 130). Como um “organismo”, teria propriedades próprias que encontrariam uma ordem espontânea sem uma mente reguladora desse ente biológico. Diante disso, todo esforço de planificação econômica, no estilo do que vinha sendo exaltado naquela década, seria problemático do ponto de vista de Hayek por violar tais propriedades diante das quais, inclusive, a capacidade do economista seria limitada em termos dos conhecimentos necessários para produzir os resultados pretendidos. Mas isso não seria impeditivo ao desenvolvimento de medidas pontuais diante da dinâmica econômica. Na polêmica contra a Escola Histórica da Economia, Hayek deixa isso bastante evidente quando escreveu que a investigação científica não leva o economista a uma:
“(…) purely negative attitude towards any kind of deliberate interference with the working of the system. But it may, and very likely will, mean an almost consistently negative attitude towards those proposals for interference which are not based upon an understanding of the working of the system; namely, the proposals which spring most readily and regularly to the lay mind. Further, in view of the incomplete nature of our knowledge, it will mean that, in all doubtful cases. (…) there will exist a presumption against interference. However, this by no means does away with the positive part of the economist’s task, the delimitation of the field within which collective action is not only unobjectionable but actually a useful means of obtaining the desired ends. Unfortunately, at the present time, as at the time when theoretical economics was first in the ascendancy, the effects of an extensive State activity which is based upon a quite inadequate understanding of the coherence of economic phenomena are so preponderantly more harmful than the absence of any new form of State activity which he might like to suggest, that the economist is, in practice, almost inevitably driven into a mainly negative position. But it is certainly to be hoped that this practical necessity will not again prevent economists from devoting more attention to the positive task of delimiting the field of useful State activity. (…) the classical writers very much neglected the positive part of the task and thereby allowed the impression to gain ground that laissez-faire was their ultimate and only conclusion – a conclusion which, of course, would have been invalidated by the demonstration that, in any single case, State action was useful. To remedy this deficiency must be one of the main tasks of the future”. (Hayek, 1933, p. 134-135)
É uma posição conhecida e que compareceu em grande parte da produção de Hayek ao longo do século XX. É uma posição que recebeu inclusive reprimenda de Keynes a Hayek nas correspondências referentes ao livro O caminho da servidão do economista austríaco por este não se comprometer a apresentar o que poderia ser, ao cabo, realizado em termos práticos diante das prementes necessidades de administração da economia capitalista (Keynes, 1944/2013b, p. 386-7). Em sua continuada objeção aos métodos keynesianos, Hayek fez, já nos anos de 1970, a curiosa e elucidativa distinção entre a atuação de tipo keynesiana, mais direta sobre a vida econômica, em acepção “artificial”, e, de outro, a atuação austríaca recomendada, mais cautelosa e pontual, que não produzisse consequências piores do que os problemas econômicos identificados, tendo ao fundo a sugestão da “jardinagem” adequada para que algo “natural” pudesse prosperar:
“Para que o homem não cause mais dano do que benefício em seus esforços para melhorar a ordem social, ele terá que aprender que neste, como em todos os outros campos onde prevalece a complexidade essencial de tipo organizado, não se pode adquirir o pleno conhecimento que tornaria possível o domínio dos eventos. Ele terá, portanto, que usar o conhecimento que pode alcançar, não para moldar os resultados tal como o artesão molda em seu ofício, mas sim para cultivar um crescimento fornecendo o ambiente apropriado, da maneira como o jardineiro o faz para suas plantas”. (Hayek, 1978, p. 34)
O ponto realmente importante a ser sublinhado é que mesmo diante da ausência de recomendações claras justificada pelo insuficiente estágio do conhecimento econômico, Hayek abriu sala, já em 1933 e reafirmada tantos anos depois na comparação com a jardinagem, para a intervenção necessária, porém, pontual, calculada, para a “atividade útil do Estado”, tendo em mente se tratar de um campo delimitado, contrariando, não obstante, aquelas posições empedernidas associadas à filosofia do laissez-faire.
É interessante observar que tais aspectos ressoaram para Popper na redação de The poverty of historicism, publicado em duas edições da Economica em 1944 e, finalmente, como livro, em 1957. Como escreveu o filósofo na “nota histórica” ao livro, o “esboço básico veio a completar-se por volta de 1935. Pouco depois [em 1936], li um trabalho similar no Seminário do Prof. F. A. von Hayek, na “London School of Economics”” (Popper, 1957/1980, p. 1). Outros materiais de Hayek passaram a integrar as reflexões de Popper sobre o tema da interferência na direção dos rumos sociais. A posição antimarxista de Popper é bem conhecida e o livro em questão é declaradamente uma reação à chamada tendência “holística” e à sugestão revolucionária de transformação global, apresentando como alternativa a engenharia social gradual e pontual como método mais favorável do desenvolvimento da sociedade capitalista.
Popper destacou sobretudo a ação gradual por meio de uma engenharia social no sentido de “projetar instituições sociais, reconstruí-las e fazer as já existentes operarem” (p. 152), “instituições” em “sentido muito amplo, incluindo entidades de caráter público e privado”. Ressoando Hayek, sugeriu que o engenheiro social “reconhecerá que apenas algumas instituições sociais brotam por força de um planejamento consciente, enquanto a grande maioria delas tão-somente surge como imprevista consequência de ações humanas” (p. 52). A questão é fundamentalmente instrumental, o desenvolvimento de “meios para certos fins ou suscetíveis de se verem postas ao serviço de certos fins – antes máquinas do que organismos” (p. 53), sem ignorar as peculiaridades das instituições comparativamente ao ente puramente biológico. Não obstante, o destaque cabe ao permanente ajustamento como aspecto essencial da projetada administração da economia capitalista:
“A abordagem típica da Engenharia de ação gradual é essa. Ainda que seus adeptos possam, por vezes, afagar certos ideais que digam respeito à sociedade “como um todo” – o bem-estar geral, talvez não se fiam no método de replanejá-la como um todo. Sejam quais forem os fins em vista, eles procurarão atingi-los através de pequenos ajustamentos e reajustamentos que possibilitem melhoria contínua. Esses fins variarão: acumulação de riqueza ou de poder, em benefício de certos indivíduos ou grupos; distribuição de riqueza e poder; proteção de certos “direitos” de indivíduos ou grupos, e assim por diante”. (Popper, 1957/1980, p. 53)
Ressaltou, na sequência, que “a Engenharia social pública ou política, revelará as mais diversas tendências, totalitárias e liberais” (p. 53), seguindo a isso o elogio aos “programas liberais de longo alcance, através de reforma gradual” no exemplo de “W. Lippmann, sob o título ‘The agenda of liberalism’” (idem), presente no livro The good sociey de 1937, ao qual Popper acrescentou em nota W. H. Hutt em Plan for reconstruction, de 1943. Essa destacada “Engenharia social pública ou política” é evidentemente da órbita da atuação estatal sobre a economia capitalista, recomendando as reformas liberais. Há sala, pois, para o intervencionismo estatal nessa renovação do liberalismo tal como expressada pelo filósofo austríaco. Por consequência, vale a orientação à ação gradual, pontual, reformando certos aspectos, ajustando-os e reajustando-os de modo a não ameassem seriamente os fundamentos da vida econômica da sociedade sob sua forma histórica capitalista.
Assim, na comparação com o método da transformação radical que ampliaria, segundo Popper, sem medida o poder estatal, sugeriu que a:
“abordagem da ação gradual abrangeria, por exemplo, uma série de reformas paulatinas, inspiradas por uma tendência geral, como seja, exemplificadamente, a tendência no sentido de mais equitativa distribuição de rendas. Dessa maneira, os métodos de ação gradual podem levar a alterações do que geralmente se denomina ‘estrutura social de classes’”. (Popper, 1957/1980, p. 54)
Apesar de não desenvolver esse último ponto em específico, reduzindo as classes ao diferencial de renda, Popper acrescentou a diferença do método da ação gradual de “caráter cauteloso e autocrítico”, havendo o pressuposto de que processos revolucionários são método efetivamente querido por uma mente despreparada e não o resultado de processos sociais em circunstâncias históricas específicas. A diferença entre os métodos seria, segundo o filósofo, “não tanto de escala e escopo, mas de cautela e preparação para inevitáveis surpresas” (p. 55), nas quais estão envolvidas as incertezas quanto ao “fator humano” (p. 55-56).
Com essas indicações gerais, vemos que há certas aproximações importantes como formações ideais no contexto e quadro da renovação do liberalismo. Da posição social desses intelectuais, cabia dar respostas às condições problemáticas de então, variando quanto à clareza e especificidade das medidas voltadas à administração da economia capitalista. Se comparado ao método do dentista, do jardineiro ou do engenheiro, é certo que não havia discordâncias fundamentais quanto à necessária intervenção estatal voltada à administração científica da acumulação. Caberia perguntar pela potência dessas ideias ao longo das décadas com o fito de convencer amplas cadeias de grupos e classes sociais de que os problemas identificados decorrem não dos fundamentos da economia capitalista, mas dos métodos inadequados de sua administração.
Referências
Hayek, F. A. (1978). The trend of economic thinking. Economica, n. 40, pp. 121-137. http://www.jstor.org/stable/2548761
Hayek, F. A. (1978). New studies in philosophy, politics, economics, and the history of ideas. Routledge & Kegan Paul.
Keynes, J. M. (1930/2013a). Economic possibilities for our grandchildren. Essays in persuasion. In The Collected Writings of John Maynard Keynes, Vol. IX. Cambridge University Press.
Keynes, J. M. (1944/2013b). Letter to F. A. Hayek, 28 june 1944 In The Collected Writings of John Maynard Keynes, Vol. XXVII. Cambridge University Press.
Medeiros, J. L. (2013). A economia diante do horror econômicos: uma crítica ontológica dos surtos de altruísmo da ciência econômica. Niterói: Editora da UFF.
Popper, K. (1980). A miséria do historicismo. São Paulo: Editora Cultrix/Editora da Universidade de São Paulo.
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