O que revelaram os manifestos dos gestores do capital em 2021?, por Elcemir Paço Cunha e Thiago Martins Jorge
Com algum distanciamento temporal, é muito importante recuperar episódio de 2021 que evidenciou tanto a atuação política dos agentes econômicos e quanto a cobertura do jornalismo especializado em um dos períodos mais ameaçadores da história recente do Brasil. Essa recuperação é bastante útil para jogar luz sobre as mistificações e as tendências regressivas que constituem parte da particularidade brasileira.
Passados praticamente dois anos, o episódio da divulgação (e do recuo) de diferentes manifestos de empresários e entidades empresariais em “defesa da democracia” no conturbado mês de setembro de 2021, revela bem mais do que a reação fora de tom dos então protagonistas ocupantes dos cargos da presidência da república, do ministério da economia e das presidências da Caixa Econômica Federal e do Banco do Brasil.
Os comentaristas dos principais meios de comunicação do país deram à época destaque à exagerada resposta dos bancos públicos, ao ameaçarem deixar a FEBRABAN no caso de divulgação de uma nota em conjunto com a FIESP e outras entidades. O destaque entre os comentaristas, após a divulgação da nota sem autoria, recaiu sobre o seu conteúdo brando em defesa da democracia e do equilíbrio entre os poderes, o que não encontraria justificativa na reação daqueles protagonistas.
Houve, porém, outros elementos no episódio que ajudam a produzir conclusões que destoam da frequente mistificação (como “o mercado”), mistificação essa adotada e incrementada pela linguagem jornalística. O contexto de crise econômica, política e sanitária favoreceu, momentaneamente naquele contexto, a apreensão de que “o mercado” é bem mais do que bancos, fundos e firmas de gestão de ativos. As circunstâncias auxiliaram na extração de conclusões que minaram, episodicamente ao menos, as mistificações mais favoritas.
Os manifestos dos gestores econômicos do capital, como preferimos nomear tais agentes, possibilitaram alguns reconhecimentos importantes. O posicionamento adotado ajudou a destacar o heterogêneo sob aquela mistificação predileta: 1) O manifesto da FIESP, apesar de postergado – segundo as pretensões políticas de Paulo Skaf –, foi divulgado sem autoria e nele se viu uma posição mais crítica ao governo; 2) A FEBRABAN divulgou nota própria, em tom semelhante, mesmo após o recuo momentâneo da FIESP, aderindo posteriormente a uma nota conjunta com outras entidades; 3) A nota da FIEMG, por outro lado, assumiu uma posição mais crítica ao STF; 4) Empresários mineiros, em resposta, produziram uma manifesto de posição mais crítica ao governo; 5) Entidades ligadas ao agronegócio de exportação divulgaram nota ainda mais incisivamente crítica ao governo; 6) À luz do dia, outras entidades do agronegócio apoiaram e financiaram atividades em defesa do governo federal e da retórica beligerante do maior mandatário do país, ainda que com posterior recuo – ao menos em seu discurso oficial.
Certos aspectos da realidade objetiva se impuseram à mistificação “mercado” e essa é precisamente uma das funções do contexto de crise. Reconheceu-se que há uma divisão entre as “elites financeiras”, “proprietários”, “capital”, entre outras expressões pouco empregadas na cobertura jornalística. Identificou-se certo “desembarque do governo”, expressando que o “capital”, antes, esteve em peso na sustentação de um movimento político que sempre demonstrou pouquíssimo apreço pela, em seguida, evocada defesa da democracia. Registrou-se que se, antes, a democracia não foi um fator tão caro aos “proprietários”, depois, demandava-se equilíbrio e harmonia como condição aos negócios, ao funcionamento do “capitalismo”, disseram.
A extração dessas conclusões foi, como de praxe, momentânea, pois de fato há um limite de acesso aos elementos da realidade, cuja explicitação respeita certos compromissos que os comentaristas em geral – incluso o jornalismo econômico – não estão em condições de ultrapassar. Além do mais, seguiu-se de fato um recuo nessas conclusões nos meses seguintes e, como de hábito, passou-se novamente a operar aquelas mistificações frequentadas diariamente tais como o glorioso, auspicioso, terrível e vingativo “humor do mercado”.
O episódio dos manifestos dos gestores econômicos do capital mostrou também que a divisão não é efêmera e animada por aspirações politólogas meramente. As frações do capital produtivo (nas figuras das indústrias e do agronegócio), como também as frações financeiras e comerciais, e os subgrupos dessas frações, possuem muitos interesses objetivos comuns, mas não funcionam necessariamente em uníssono, sem fissuras e diferenças. Nesse conjunto, de relação complexa entre interesses comuns e diferenças, são persistentes certas posições economicamente reacionárias. Politicamente, não há aspirações humanistas e democráticas como pilares inegociáveis e, portanto, não deveria causar qualquer espanto. Na verdade, a forma política de baixas aspirações desse tipo pode servir a vários propósitos, mesmo que seja imposta às demais frações do capital e ao resto das classes e camadas sociais. Ideologicamente, há frações e subgrupos aderentes a infames teorias conspiratórias, com anelos explícita ou implicitamente regressivos, heroicos e românticos, convivendo com inspirações racionalistas no pior sentido do termo, manipuladoras e mesmo cínicas. Não obstante essa composição complicada, não se pode negar a porosidade aos apelos de regressividades econômicas, políticas e ideológicas, conforme o caso, seletivamente ou na totalidade.
Essas conclusões mais aprofundadas e extraídas por ensejo daqueles manifestos de 2021 contrariam a aparência amplamente divulgada de que os gestores econômicos do capital são personificações “pragmáticas”, quase oniscientes e blindadas ao cântico do irracionalismo. Ao contrário, nunca estiveram isentos da sedução da regressividade econômica, política e ideológica, nem o pragmatismo repele essas expressões do irracionalismo por si mesmo – antes, o contrário, pois vale mais as “consequências práticas”1. O desespero frente a resultados econômicos que fogem ao esperado pode até mesmo motivar tal movimento. Assim, nas condições de crise societária contemporânea, formaram-se, como em outras ocasiões, as condições adequadas para expressões desse tipo. E esse aspecto já estava plenamente evidenciado na adesão de amplas frações do capital ao programa vitorioso em 2018.
Esse programa, sem debate público qualificado, incorporou elementos claramente regressivos posteriormente colocados em movimento. Em termos econômicos, praticou-se a teoria das vantagens comparativas com centralidade no agronegócio. A reunião ministerial, que veio a público demonstrou, entre impropérios e baixíssimo nível intelectual, a estratégia – se é que pode ser chamada por esse nome – do então ministro da economia aclamado pelos gestores econômicos, Paulo Guedes, sobre um denominado “trade off da água” na relação com países como a Índia, é sintomática. Basicamente, tratou-se de uma aposta de que os indianos teriam que comprar mais alimentos do Brasil por limitações de irrigação naquele país asiático. E isso somado à tentativa de liquidação da CEITEC, empresa pública voltada à produção de semicondutores no Brasil e única na América Latina. Em matéria política, os principais porta-vozes do governo federal diuturnamente colocaram em dúvida os pilares e os processos da república; uma continuação, podemos dizer, da posição do maior mandatário, ainda na qualidade de deputado, ao enaltecer torturador no parlamento. A continuidade nessa matéria fez adensamentos posteriores, como confirmado no fatídico 8 de janeiro de 2023. Ideologicamente, são notórias e sempre marcantes as tendências místicas, delirantes, beligerantes, de padrão civilizacional arcaico, em que a vulgaridade é tática de grande apelo para as consciências comuns, no entanto. Tudo isso era plenamente anunciado em 2018, tornando-se empiricamente descritível e discernível sem demandar grande esforço cognitivo.
A tudo isso os gestores econômicos aderiram e, em 2021, pelo menos algumas das frações ensaiam recuos táticos de validade contingente. Isso teve algum efeito nas eleições de 2022. Tais gestores encontram-se, em 2023, no quadro dessa mesma posição tática. Até quando? Além de diversificadas, as personificações do capital não são imunes às tendências regressivas. E nada como um cenário de crise econômica prolongada para expor isso.
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Gestores Econômicos do Capital
Como escreveu James, um dos mais importantes expoentes do pragmatismo, “Vê-se, por aí, o que tinha em mente quando chamei o pragmatismo de mediador e reconciliador e disse, tomando de empréstimo a palavra de Papini, que “desentesa” nossas teorias. O pragmatismo, de fato, não tem quaisquer preconceitos, quaisquer dogmas obstrutivos, quaisquer cânones rígidos do que contará como prova. É completamente maleável. Acolherá qualquer hipótese, considerará qualquer evidência. Segue-se daí que no campo religioso mantém-se em grande vantagem, tanto sobre o empirismo positivista, com o seu pendor antiteológico, quanto sobre o racionalismo religioso, com o seu interesse exclusivo pelo remoto, pelo nobre, pelo simples e pelo abstrato no sentido da concepção.
Em suma, o pragmatismo alarga o campo de procura de Deus. O racionalismo apega-se à lógica e ao empíreo. O empirismo agarra-se aos sentidos externos. O pragmatismo está disposto a tomar tudo, a seguir ou a lógica ou os sentidos e a contar com as experiências mais pessoais e mais humildes. Levará em conta as experiências místicas se tiverem conseqüências práticas. Acolherá a um Deus que viva no âmago mesmo do fato privado — se esse lhe parecer um lugar provável para encontrá-lo” (James, W. Pragmatismo - Textos selecionados. Coleção Os Pensadores n. 40. São Paulo: Abril Cultural, 1974, p. 22).