Annie Ernaux, as fotos e a inspiração
A história de uma foto que virou podcast, poema e newsletter
A minha leitura matinal da vez tem sido um livro-entrevista da Annie Ernaux à diretora e documentarista Michelle Porte chamado Le vrai lieu (O lugar verdadeiro, ainda não publicado no Brasil). Nesse livro, a autora responde às perguntas da diretora e faz um apanhado sobre o conjunto da sua obra literária, falando de estilo, influências, motivações, a relação entre sua vida pessoal e a escrita. Pra quem gosta de literatura sobre o escrever, trata-se de um deleite porque Ernaux é mestre no assunto. Ano passado, ela foi a ganhadora do Nobel de Literatura “pela coragem e acuidade clínica com as quais ela descobre as raízes, afastamentos e restrições coletivas da memória pessoal”.
Em uma das passagens, Ernaux fala do papel das fotos no processo criativo de escrever seus livros. Segundo ela, as fotos são uma espécie de gatilho pra escrita, pois representam a presença/ ausência, o passado/ presente, a vida/ morte. A foto é também a realidade e a concretização de um tempo que parou. Na sua escrita memorialista, o que vale são as fotos de pessoas, sendo as fotos familiares e o que ela sente a partir delas os pontos de partida pros seus projetos.
Há quase dois anos, vivi um episódio interessante. Em uma feira de antiguidades na cidade de Coimbra, encontrei um envelope sendo vendido em meio a fotos e postais antigos. Nele, estavam os dizeres: 'Foto Hatiya - Av. Yara, 49 - Osasco - São Paulo'. Não haveria nada de especial no endereço se não fosse o fato de Osasco ser a cidade natal da minha mãe, um lugar a milhares de quilômetros dali. Dentro do envelope, havia uma foto preto e branca comum, de um casal com roupas e cabelos dos anos 1960, e uma mensagem que dizia: 'Dedicado ao meu irmão Antonio como recordação da visita de Manuel ao Brasil, S. Paulo 2-11-67, João Martins'. Nessa data, minha mãe tinha 10 anos e vivia com a família não muito longe do endereço do envelope. Eu mesma, quando adulta, morei em Osasco e trabalhei em uma empresa cuja sede ficava justamente na Vila Yara.
Após essa série de coincidências, a foto me incitou uma série de questionamentos e ideias sobre a narrativa por trás dela. Será que minha mãe os conhecia? Teriam eles convivido com meus avós? Estariam eles ainda vivos? Tal como Ernaux refletiu em Le vrai lieu, a foto encontrada naquela banca de antiguidades em Portugal representava um passado, um instante interrompido em 1967. No entanto, ela agora fazia parte do meu presente, de um tempo que corria em direção de uma história e de um desejo por contá-la. Fiquei obcecada por respostas; ao fim, o desfecho foi pra lá de feliz.
A foto e a busca não ficaram apenas na minha memória, elas se tornaram literatura. Ela virou um podcast narrativo chamado Laços, escrito por mim e minha amiga Andréia Mariano. Foi um sucesso dentre os projetos entregues na disciplina Laboratório Audiovisual do Mestrado em Escrita Criativa da Universidade de Coimbra e pode ser conferido no Spotify. Depois do roteiro, a história virou poesia. Zoom está disponível na primeira edição da Revista Farpa, a revista literária do mesmo programa de Mestrado.
A Annie Ernaux tinha razão. A emoção que senti ao conhecer a história do Sr. João e da Sra. Augusta, os nomes por trás da foto, transbordou pra mais matéria escrita. Hoje, ela ilustra esta newsletter.
PS: quer saber a história da foto? escute o podcast e leia o poema. ;)
COLAGEM DE DICAS
LIVE: Na terça-feira, dia 21/11, às 19h00 (horário Brasil), eu participarei de uma live superespecial com as escritoras Giovana Madalosso, Paula Carvalho e Tatiana Nascimento no perfil @grandediaescritoras do Instagram. Vamos falar de uma série de novidades dentro do Movimento Um grande dia para as Escritoras, dentre elas o lançamento de um podcast narrativo contando como o movimento surgiu e o que ele representa hoje para a literatura escrita por mulheres. Pequeno spoiler: fiz parte da produção, escrevi o roteiro e co-apresentei o programa, o que me enche de orgulho do resultado. Não perca!
EVENTO: O último PUB & WRITING do ano vem numa edição especial de Natal. Esse evento é pra quem está em Londres, gosta de escrever ou é curiosa/ curioso pra começar. Será dia 27/11, às 18h45, no Ye Olde Mitre. Inscrições aqui.
PODCAST e INSTAGRAM: Pra quem gosta de poesia, o podcast português O poema ensina a cair, da jornalista e divulgadora de poesia Raquel Marinho, é o lugar certo pra ouvir conversas com poetas, apreciar declamações de poesia e ter novas referências contemporâneas no gênero. Além do podcast, Raquel Marinho tem um Instagram no qual ela posta trechos de poesias, o que deixa qualquer scrollada pelo app mais poética e bonita.