Terror enquanto existência do outro
Ou: carta aberta à caríssima Mariliz Pereira Jorge sobre o terrorista Netanyahu.
Em memória da poeta palestina Heba Kamal, morta num bombardeio de Israel.
Em homenagem à escritora Adania Shibli, censurada pela Feira de Frankfurt.
Para Mayer Obadia, irmão de armas contra a inexistência desde a infância.
O co de coabitação não pode ser pensado simplesmente como vizinhança espacial: não há lar sem adjacência, sem uma linha que demarque e ligue um território a outro e, portanto, nenhuma maneira de residir em qualquer lugar delimitado sem exterior que defina o espaço de habitação. O co de coabitação é também o nexo onde temporalidades convergentes articulam o tempo presente, não um tempo em que uma história de sofrimento nega a outra, mas quando resta possível que uma história de sofrimento forneça as condições de sintonia com outra história semelhante e que quaisquer conexões feitas procedam através da dificuldade de tradução.
(Judith Butler, Caminhos Divergentes)
Historicamente, as coisas mais terríveis – guerras, genocídios e escravidão – foram resultados não da desobediência, mas, sim, da obediência.
(Howard Zinn)
Estamos, sim, levando a cabo a Nakba de Gaza.
(Avi Dichter, Ministro da Agricultura israelense, ex-diretor da Shin Bet)
Antes de qualquer coisa, uma ressalva, quiçá a mais importante e óbvia: árabes também são semitas. Agora, repita comigo: Árabes. Também. São. Semitas.
E por que a mais importante, para além das obviedades?
A começar por meu assunto favorito: eu mesmo. Ishak. Corruptela de Isaac. O braço hebraico de Abraão, quem quase matou o filho: eu, um dos três patriarcas israelitas. Esaú, meu irmão e antagonista, teria dado origem aos povos árabes. Quis o destino, a família do meu avô, em algum momento da história maronita, converteu-se ao cristianismo e se estabeleceu em Hadath, no Líbano. Em miúdos: eu, Faixa de Gaza. Velho chiste. Por toda uma vida, confundido com judeu. Na escola, no trabalho, de norte a sul do Brasil, aonde quer que eu fosse. Menos em Londres. Em Londres, fui devidamente reconhecido e tratado como árabe. Embora esteja longe de ser muçulmano e estivesse então acompanhado de uma branquinha com fenótipo europeu. Bastou para o garçom, fisionomia nauseabunda, demorar meia hora pra nos atender em uma lanchonete vazia, de fato os únicos clientes, após ignorar mil acenos, e voltar com o pedido – um fish and chips basicão – quase hora depois. O fish, carvão. Sem hipérboles. Carvão, carvão ipsis litteris. Evidente: eu não era bem-vindo ali. Nem a branquinha que me acompanhava, traidora. Trinta anos antes, o mesmo se dava com meus pais (ele: virologista libanês puro sangue; ela: bacteriologista mezzo judia sefardita – eu, protozoado 83% semita), então bolsistas do CNPq: cresci escutando a história de como uma senhorinha inglesa havia perseguido minha mãe no supermercado, trombando o carrinho contra as pernas dela, só porque a vira (branquinha) com meu pai, árabe cuspido e escarrado – quanto mais de barba. Islamofobia? Não, meus caros. Antissemitismo.
Mesmo antissemitismo (+islamofobia) que leva soldados do Batalhão Azov, por exemplo, a lubrificarem suas balas com banha de porco. Mesmo antissemitismo (+neonazismo) que leva supremacistas brancos a marcarem, na Europa, casas de judeus com a estrela de Davi. Mesmo antissemitismo (+misoginia) que leva covardes (aqui, sim, eufemismo) a enxovalharem mulheres de burca no centro do Rio. Tudo antissemitismo. Há muçulmanos, cristãos e judeus em Israel, em Gaza, na Cisjordânia, no Líbano. Há, inclusive, quem diria, ateus. O antissemitismo vale contra todos. Que me perdoe quem porventura se sinta confuso ou indignado, portanto. Minha existência enquanto semita é inegociável.
Bem como a existência dos cerca de treze milhões de judeus e dos mais de trezentos milhões de árabes espalhados pelo mundo, dos dois milhões de palestinos em Gaza. A própria existência do Estado de Israel. Falemos, brevemente, sobre antissionismo. Que não: não (necessariamente) é antissemitismo (+antissionismo). Um dos primeiros vídeos que me chamou a atenção há pouco mais de mês mostrava adolescentes judeus, cidadãos de Gaza, enfrentando soldados israelenses com cordões humanos e bandeiras da Palestina em mãos. Daí em diante, memes e vídeos e absurdos de todo naipe passaram a chegar aos milhares. Um, em especial, deu zoom. As aspas do Dr. Israel Shahak, então professor de química orgânica na Hebrew University of Jerusalem e sobrevivente do Holocausto, falecido em 2001, dois meses antes do 11/9, portanto, tanto pelo anagrama do nome quanto pelo peso de suas palavras: “Os nazistas me fizeram ter medo de ser judeu, e os israelenses me fizeram ter vergonha de ser judeu.” Isto, após o massacre durante a operação Paz na Galileia, a partir de 1982, no Líbano.
Pois bem.
Introdução feita, introdução de um artigo que contava com oito páginas, espaço simples, quase pronto para o envio, quando abri minha caixa de entrada e a crônica de Mariliz Pereira Jorge, “Lula para o Prêmio Nobel da Paz”, publicada na Folha, me saltou aos olhos – ou fez meus olhos saltarem mesmo. Sem entrar no mérito da (sim, infeliz) postura de Lula (mais uma), a roteirista, após críticas ao presidente, assim arremata o texto como argumento de que o Estado de Israel não estaria cometendo atos de terrorismo a exemplo do Hamas:
Não há notícias de que o Exército de Israel, por mais letal e condenável que seja sua ação, esteja estuprando mulheres, arrastando-as pelas ruas, assassinando pais na frente de filhos e vice-versa, queimando e decapitando gente ainda viva, com o único objetivo de aterrorizar as pessoas e pelo prazer de matar.
Minha cara Mariliz: talvez não haja notícias tais no Brasil, embora eu não esteja em Hong Kong quanto menos escrevendo em mandarim. Talvez, de fato, não haja notícias tais na grande mídia brasileira. Aí, sim, concordaríamos. Viva a internet. Bons tempos de AltaVista. Era uma ferramenta de busca, state-of-art da coisa toda na época. Há quem não se lembre ou nem estivesse vivo para lembrar. Foi uma revolução. De dificílimo acesso, hoje, ferramentas de busca lutam para escapar da extinção, sumindo da vista dos seres humanos, mas há quem jure de pés juntos: ainda existem in the world wild web. Quis o destino, tropecei numa delas, descendo as escadas do prédio de manhã cedo. Perguntei seu nome, a criatura respondeu: Google. Dei um pulo para trás. Vendo meu espanto, a criatura confessou: brincadeira, meu nome é Brave. E qual não foi minha surpresa, e não foi mesmo, quando o tal do Brave, após uma combinação mágica de palavras minhas, israeli+soldiers+raped+palestinian, devolveu links e mais links e outros tantos links de notícias sobre casos de estupros envolvendo, veja só, soldados israelenses e mulheres palestinas. Logo na primeira página de buscas, casos não apenas recentes como remetendo a 2004, alguns inclusive admitidos pela própria IDF. Meu mundinho ruiu.
Imagina quando resolvi pesquisar sobre crianças mortas na frente dos pais desde sempre. Mariliz: Know their names. Outra criatura selvagem, o Telegram, disse-me Brave, preferi nem ver, está com o ventre abarrotado de imagens de crianças mortas nos braços dos pais. Ainda assim, fato: mais crianças já foram mortas (na frente de ou juntas com) seus pais no último mês que nos últimos vinte anos de conflito. They were only children, Mariliz, até o NY Times sabe. E vice-versa: aqui, encontram-se vários órfãos palestinos em busca de quem os adote. Olha a chance. Não só pais morrem na frente dos filhos, Mariliz, como morrem enquanto escudos humanos tentando proteger seus filhos. Um desses casos, inclusive, inspirou a personagem do meu conto, Coabitáveis: a história do menino Muhammad e do seu pai Jamal al-Durrah. Mais de vinte anos de chacina e, evidente, pai nenhum espera mais justiça alguma.
Sobre queimar e decapitar pessoas vivas, bebês palestinos seriam gente? E as tantas pessoas que foram soterradas vivas? Ou mutiladas (inclusive, por civis)? Será que vale? Ouvi dizer até que o Estado de Israel teria sido construído sobre as cinzas de vilarejos palestinos que arderam em chamas. Com a mais absoluta certeza, não havia pessoas lá. Né, Mariliz?
Se isso não for terrorismo, pode chamar de genocídio? “Promover criminalidade, negar proteção e acesso à água e comida não parecem crueldade?”
Hein, Mariliz?
Nove páginas.
Falemos, pois, sobre terrorismo. Sobre antissemitismo (+terrorismo).
“I’m happy to be a fascist”
Conforme já dito, nem todo antissionista é antissemita. Sem vice-versa (salvo uma exceção). É de se questionar, porém, como a própria Mariliz admite: quanto desse antissionismo não adveio da forma como o Estado de Israel fora estabelecido, e não de sua existência em si? Bom exemplo disto é o escritor e ativista Miko Peled, filho de Matti Peled, general das Forças Israelenses na guerra de 1967, e neto do líder sionista Avraham Katsnelson, quem assinou a Declaração de Independência de Israel em 1948:
Foi um processo incrivelmente difícil de aceitar o fato de que tudo que me foi dito não era verdade. Era uma história inventada. A verdade jaz do outro lado. Lembro de quando ouvi, pela primeira vez, palestinos descrevendo o que aconteceu em 1948. Descreviam um massacre. Uma história que não era apenas ligeiramente diferente, mas o contrário total e absoluto do que eu tinha como verdade. Não é que haja uma diferença nas nuances, não se trata de uma diferença que possa ser superada. Você tem de escolher um lado. E o lado que eu escolhi me fez rejeitar o sionismo. Fui levado a agir. A aprender mais sobre a resistência palestina. E, quanto mais eu aprendia, mais eu me envolvia. Não aprendi sobre o sionismo na faculdade ou em livros na escola. Eu cresci em meio a ele, eu escutava o que diziam, eu sabia o que faziam.
Longe de ser o único, que o diga Yeshayahu Leibowitz. Sempre bom lembrar que não há um único pensamento sionista. Vai desde o sionismo trabalhista ao revisionista, passando pelo cultural – cujo foco principal nem sequer é a criação de um estado. Ninguém aqui é contra um Estado de Israel soberano. Desde que não exterminem a soberania do outro – com o outro junto.
Não tenho os dados, e pouco importam, mas aposto que parte considerável dos manifestantes judeus que ocuparam o Grand Central, em Nova York, no dia 28 de outubro, em protesto contra a carnificina em Gaza, era a favor da existência do Estado de Israel. O que, reitero, não deveria ser sinônimo da negação da existência do outro. Quatrocentos manifestantes acabaram sendo detidos. Veja bem: num país em que demonstrações abertamente neonazistas são liberadas pelas autoridades, centenas de judeus foram presos na cidade mais cosmopolita do mundo por externarem seu apoio aos palestinos e acusarem o Estado de Israel de estar cometendo genocídio. Agora: explica, Mariliz.
Ao menos, ainda não chegaram ao nível do próprio Estado de Israel que vem discutindo um projeto de lei que permitiria que as forças de segurança atirem em manifestantes israelenses, contra o próprio povo (judeus ou árabes), dentre outras medidas nada democráticas. Oportuno. A proposta foi do ora Ministro de Segurança Nacional, Ben Gvir, antes líder da extrema-direita no parlamento. Adivinha? Antissemitismo (+fascismo). Qual é o problema? Contradição nenhuma. Em 2013, a então Ministra da Cultura de Benjamin Netanyahu e fã de Mussolini, Miri Regev, foi ao ponto: “I’m happy to be a fascist”. Dá até camiseta.
Enquanto isso, a ONU... ruma à total irrelevância. “Dessa vez, talvez para sempre. Os efeitos dessa hipocrisia serão devastadores. Um novo mundo está nascendo”, tuitou o ex-jogador de futebol sírio Ahmad Deeb. Enquanto isso, Israel... compra briga com a ONU por conta do discurso de Guterres. Imagina alguém se voltar contra a organização criada basicamente para que crimes cometidos contra esse alguém não voltassem a acontecer justo porque a organização acabou fazendo exatamente isso? A pedra fica por conta de Jill Stein, candidata à presidência dos EUA e, desnecessário observar, judia: “Levo o ‘nunca mais’ muito a sério, e isso significa ‘nunca mais’ pra quem seja”.
Enquanto isso, Yuval Noah Hariri... já acusado de cometer crime de ódio em passagens de seu best-seller Sapiens, teve a brilhante ideia de declarar que “Israel enfrenta hoje sua maior ameaça em anos. Podemos estar, teoricamente, a apenas 24h de uma guerra nuclear pois, caso o Hezbollah ataque Israel, Israel irá se defender usando armas nucleares.” Princípio da proporcionalidade, afinal, só vale (ou deveria valer) em democracias onde o Judiciário, por exemplo, goza de independência. O que, resta claro, inclusive para israelenses, não é o caso do Estado vislumbrado por Netanyahu – quem, aí, sim, parece-me ser a maior ameaça enfrentada em anos – não só por Israel.
Enquanto isso, a polarização... como não poderia deixar de ser, novamente dá as caras, e em nova inversão de princípios e valores. Quem até dia desses defendia a autodeterminação do indivíduo e se mostrava totalmente contrário a máquinas estatais, pregando algo como uma revolução popular, hoje aplaude o controle absoluto e os crimes de guerra do Estado de Israel. Quem, por sua vez, até dia desses vociferava contra idosas e suas instalações orgânicas em mesas judiciais, rotulando-as de terroristas e antidemocratas, hoje passa a mão na cabeça do Ha-mas. Pelo menos, ainda é divertido ver esquerda e direita trocando de papéis a cada seis meses. Falta só sincronizar os discursos que, aí, talvez, o povo tenha alguma chance contra Davos et al. Seria bem simples, na verdade. Bateu dúvida? Só correr atrás dos princípios pelos quais as pautas se norteavam seis meses antes.
Contradições que, evidente, se estendem aos oráculos artificiais. Perguntado se palestinos merecem ser livres, o ChatGPT responde: “A questão sobre se Palestinos merecem ser livres é um tema complexo e sensível. Envolve considerações históricas, políticas e étnicas. As pessoas têm diferentes opiniões a respeito e a resposta depende das perspectivas e crenças de cada qual.” Mesma pergunta, agora substituindo “palestinos” por “judeus” e... “sim, como qualquer grupo de pessoas, os Israelenses também merecem viver em liberdade e segurança. A liberdade é um direito humano fundamental que se aplica a todos os indivíduos e comunidades”. Ou seja: se “qualquer grupo de pessoas”, para o ChatGPT, palestinos nem gente são.
A coisificação das flores no inverno árabe
Não que difira muito do discurso histórico de certas autoridades israelenses. Tanto para o ChatGPT quanto para o Rabino Eli Ben-Dahan, então Vice-Ministro da Defesa, palestinos “são animais, não são humanos.” Adendo de Netanyahu: “animais selvagens”.
Cobras, segundo Ayelet Shaked, Ministra da Justiça entre 2015 e 2019, para quem “eles devem ir embora, assim como as casas onde criam suas cobrinhas. Caso contrário, mais cobrinhas serão criadas lá.” Todo um zoológico, menos humanos. Sabemos de cor as consequências da desumanização do outro. E as origens.
“Não estamos interessados em todo esse discurso racional sobre a Palestina. Para nós, só existe um propósito: destruir Gaza, destruir esse mal absoluto.” Aspas atuais do ex-embaixador Israelense na Itália, Dror Eydar, em entrevista a Rete 4. Poder de síntese maior que o do ex-Ministro do Interior, Eli Yishai, em 2012, todavia, impossível: “Vamos mandar Gaza de volta pra Idade Média”. Enfim: promessa cumprida.
Assim, de fato, diálogo nenhum é possível. “Ah, mas e o Hamas?” Viu só? Pois saliento: não apenas o Ha-mas. O que não falta é fundamentalista islâmico nesse mundo. Contudo: vou nem perder tempo compilando as Top10 declarações mais irascíveis feitas por árabes contra judeus. O antissemitismo do lado de lá do muro é notório. Milenar. E, já bem ilustrado, recíproco.
Subjetivo demais, talvez, afirmar que não se deve jamais equiparar a violência do colonizador à resistência do colonizado? Não vou entrar aqui na questão colonial. Ao menos, não em relação a Israel, vez que os colonizadores de fato são e sempre foram os países anglófonos do Norte Global – antes Inglaterra, hoje Estados Unidos. E Inglaterra – vide Tony Blair como o grande candidato de Israel para coordenar as “ações humanitárias” na Faixa de Gaza. No que sobrar. Não vou justificar ações ditas revolucionárias por parte de terroristas que tão-somente oprimem ainda mais o povo que dizem proteger da opressão. Nem vou destrinchar um meme com o qual me deparei nas redes que dizia: “Se os israelenses pararem de lutar, haverá paz. Se os palestinos pararem de lutar, não haverá mais palestinos”. Deixemos as subjetividades de lado.
Fato é, e bem objetivo: de 2008 a 7/10, para cada israelense morto no conflito, outros vinte palestinos foram assassinados, boa parte crianças. Também fato: o gráfico de um “Novo Oriente Médio” mostrado por Netanyahu duas semanas antes do atentado do Hamas em que a Palestina havia literalmente sumido do mapa. Coin-cidência. Mas haja fato: como a indústria bélica de Israel se desenvolveu com os bilhões de dólares injetados pelos Estados Unidos, bilhões que, hoje, faz tempo, alguém vem lucrando de volta com guerra após outra. Estados Unidos, diga-se, que já começam (antes tarde que nunca) a escalar o conflito, bombardeando a Síria, e cujo Departamento de Estado recém-afirmou não haver evidência alguma de crimes de guerra por parte de Israel. Viu só, Mariliz? Fósforo branco, hospitais destruídos, os corpos de quase dez mil civis assassinados, metade em caixões bem pequeninos: exato. Tudo fake news.
A ação que corre no Tribunal Penal Internacional, inclusive. Outra a caminho: Gilles Devers, um dos advogados mais proeminentes da França, reuniu, em dez dias, um exército de advogados (cerca de trezentos) ao redor do mundo para denunciar Israel pelos novos crimes de guerra.
E tem quem siga com o “Ah, mas e o Hamas?” Ai, ai. O Hamas, como bem ensina o escritor franco-libanês Amin Maloouf, não responde pelo povo palestino. Quanto menos pelo povo árabe. Ponto. E muito, mas muito pelo contrário. Vide a Primavera que começou em 2011 e, pode-se dizer, dura até hoje – como o episódio do assassinato da jovem curda Mahsa Amini, que desencadeou uma onda de protestos no Irã, ano passado. Em O Mundo em Desajuste, Maalouf põe o ponto final:
Durante este período turbulento, muitas vezes se disse que os árabes acabaram com o mito de que são menos ávidos por liberdade que outros povos e menos inclinados a viver em democracias representativas. Esse mito efetivamente entrou em colapso, mas o que aconteceu vai muito além disso. (...) Em nenhum momento da história recente – nem mesmo na queda do Muro de Berlim – vimos dezenas de milhões de pessoas enfrentando a morte, expondo o peito às balas, e não ficando cansadas nem desanimadas, como vimos em Taez, Zawiya, Manama ou Homs, dia após dia, semana após semana. Em nenhum lugar do mundo vimos tanto heroísmo. É um fenômeno excepcional, sem precedentes, e talvez o prenúncio de uma renovação democrática mundial.
Não há comparação possível, portanto, e aqui dou razão a Mariliz (mas nem tanto), entre um grupo terrorista, teocrático, irracional e ilegítimo que, como já dito, oprime o próprio povo, e um Estado que se diz democrático cujas ações, no entanto, demonstram-se terroristas per se (e teocráticas e irracionais e ilegítimas – para parte da população, que seja, assim como o próprio Hamas ou o não-título do Botafogo). Não há comparação possível entre o leque de ações do Estado brasileiro e o do PCC para além da erística. Qualquer coisa para além disso, segundo o princípio da legalidade estrita, é reunião não agendada no Ministério da Justiça.
Sderot Cinema, versão WW3 – estoura a pipoca
No dia 4 de novembro, em manifestação pró-Palestina na Av. Paulista – que, diga-se, contou com a presença do escritor Milton Hatoum, provavelmente mais um partidário do Hamas –, nova demonstração antissemita: o grosso da multidão já havia passado pela frente da CNN (“ei, CNN, desce aqui”) quando um homem com cerca de quarenta anos, branco, olhos claros, quatro policiais militares às costas (que permaneceram impassíveis diante do crime de ódio), sentiu-se seguro o suficiente para atacar verbalmente uma senhora de burca, quem, amedrontada, baixou a cabeça e seguiu adiante. Ela. Não as demais mulheres presentes no protesto, que cercaram o sujeito enquanto a porta-voz do grupo, com um megafone voltado contra o rosto do neonazista, tratou de colocá-lo em seu devido lugar: “seu fascista, antissemita, porco”, repetia. Porco já então com o rabicó entre as pernas.
Percebe, Mariliz? Tudo antissemitismo (+machismo).
E qual, afinal, é a grande importância de se deixar isso bem claro?
Primeiro, não abro mão de quem sou, direito nenhum a menos. Direito sempre é mais, para todos. Seja à terra, seja a ser. De resto: no fim das contas, na ponta do lápis, para bem além da questão da existência enquanto semita ou não, os discursos e ações tampouco me parecem assim tão divergentes. Talvez, a grande diferença, como de costume, seja que um dos lados é abertamente totalitário enquanto o outro se pretende democrático. Um é abertamente algoz enquanto o outro se coloca como única vítima. Não é. Tudo antissemitismo (+terrorismo). Logo: é a existência de todos que está em jogo. De tudo o que seja semita. O palestino Bassam Aramin e o israelense Rami Elhanan, que perderam suas filhas no conflito, entendem bem.
Dez páginas.
Voltando a CNN, outras tantas questões quanto à cobertura da imprensa ficam no ar, e bem provável que permaneçam sem resposta, ao menos, por um bom tempo. A primeira, de cara: bolsonarista bom é bolsossionista? Pois, vamos combinar, impressiona o festival de aberrações dos últimos dias na grande mídia. O insuperável foi enfim superado. Desde um singelo “éle, gê, bê, bê, mais sei lá” de uma brasileira em Israel a respeito das posições do movimento LGBTQIA+ em relação aos palestinos, passando pelo “em primeiro lugar, meu nome é Paula, não é Márcia” de outra em meio ao toque de uma sirene que, pelo visto, não era a prioridade de Paula, ao “tolerância zero (...) a gente não tá falando de pessoas, a gente tá falando de terroristas (...) imagina, era sábado, a gente queria passear, e foi um sábado preto, como a gente diz aqui, algo totalmente horrível” de uma terceira entrevistada. Jairo Nascimento, o entrevistador da última? Preto, para quem não conhece, e como seus demais colegas: engoliu a seco e permaneceu de bico calado. Agradeceu. Caso contrário: antissemitismo, oras. 2022 ficou para trás. Árabes entrevistados? Pouquíssimos. Quase nenhum. O medo é maior, capaz. Medo do outro.
Nem a Al Jazeera escapou de um telefonema do Secretário de Estado norte-americano, Antony Blinken, ao Governo do Qatar gentilmente pedindo para que a emissora mudasse um pouquinho de tom. Talvez porque, até então, a Al Jazeera estivesse veiculando, por exemplo, vídeos produzidos e compartilhados nas mídias sociais de israelenses em que a desgraça de palestinos era matéria-prima dos reels de chacota – e, claro, o próprio antissemitismo (+falta_de_laço). Palestinos saindo de casinhas de cachorro, desperdício gratuito de água, de energia elétrica, um abre e fecha de torneiras, um acende e apaga a luz sem fim. “Aquela sensação de quando vencermos Gaza e tivermos Disneylândia, Sephora, Starbucks e um hotel com parque aquático” na legenda de uma das postagens. Os perfis censurados pelas redes sociais, no entanto? Os Pró-Palestina, claro, como o Eye On Palestine, que informava (e bem) seus seis milhões de seguidores. Ao que se pergunta e o que de fato importa: Disneylândia a caminho?
Sobre o dia em que o Domo de Ferro entrou em manutenção
O que nos leva a outra questão completamente ignorada pela grande mídia – quando não tratada com escárnio. Como o próprio Netanyahu (para quem “Hitler não queria exterminar os judeus”) afirmou há alguns tantos anos, durante uma audiência no Congresso norte-americano, após seu primeiro mandato como premier: “Nações em democracia não vão à guerra facilmente. E geralmente debatem e discutem antes de fazer isso. Às vezes, precisam ser bombardeadas para entrar em guerra. Na verdade, foi isso que aconteceu na Segunda Guerra Mundial com Pearl Harbor". A questão então era a invasão do Iraque após o 9/11. Que, adivinha? Pois então.
Discorre com exímio conhecimento de causa, ao que parece. É de se questionar, portanto, antes de simplesmente rotular como fake news, como alguns ditos “jornalistas” fizeram nas redes sociais ao invés de cumprirem seu papel, qual seja, investigar, não só como um dos países mais bem preparados no quesito “defesa” foi invadido de pernas tão abertas, mas a proporção em si do estrago causado nos Kibbutz no dia 7/10. Sem problema: há os Jornalistas independentes para nos salvar. A exemplo do canal Propaganda & Co. que, veja só, se valeu de notícias publicadas na própria mídia israelense para contestar a versão oficial do Governo de Netanyahu sobre o que teria de fato acontecido. Nada, nada bonito.
É de se questionar, também, por que o filho de Netanyahu, Yair, um jovem de 32 anos, ainda em idade militar portanto, não está no front junto com o resto dos soldados israelenses, mas: de férias em Miami Beach.
Enquanto até George W. Bush defendia que Israel desocupasse Gaza, em 2008, Joe Biden segue empenhado em lançar o mundo em uma Terceira Guerra Mundial. 2024 logo ali. Evidente: nada tem a ver com as “reservas consideráveis de petróleo e gás natural” localizados na Área C da Cisjordânia e na costa do Mediterrânea, ao longo da Faixa de Gaza, segundo o estudo O Custo Econômico da Ocupação do Povo Palestino: O Potencial Não Realizado de Petróleo e Gás Natural da Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento. “É o melhor investimento de três bilhões de dólares que já fizemos. Se não existisse um Estado de Israel, os Estados Unidos teriam de inventar um Estado de Israel para proteger nossos interesses na região”, já declarou Biden no passado. Tudo teoria da conspiração.
Uma coisa é certa: teoria da conspiração (+jornalismo).
Tribalismo como coabitação possível em meio à tecnodiversidade?
Em suma, como argumenta Yuk Hui, em Tecnodiversidade:
O processo de universalização funciona de acordo com diferenças de poder: o poder tecnologicamente mais forte exporta conhecimento e valores para o mais fraco e, como consequência, destrói interioridades (...) a diversidade precisa ser pensada sob um retorno à questão da localidade, de modo a rearticular o conceito de técnica por meio de seu reposicionamento nos limites do ambiente, da cultura e do pensamento geográfico.
Maalouf, embora pelo mesmo caminho, é um tanto mais pessimista e direto:
Até agora, há poucos indícios que deem motivos para esperar que a humanidade seja capaz de superar suas diferenças, elaborar soluções imaginativas e colocá-las em prática. Existem muitos sinais que sugerem que o mundo está tão desajustado que o declínio será difícil de impedir.
Contrapontos de fato pertinentes à coabitação, ao que parece, cada vez mais utópica de Arendt/Butler: viva o diferente, sim. Mas talvez isso inclua entender – e aceitar – que tais diferenças sejam: incompatíveis? Talvez só o tribalismo salve mesmo? Nem por isso uma tribo precisaria exterminar a outra. Êxodo urbano, portanto? Reforma agrária em nome da sobrevivência? Cada um para seu canto, cada qual em seu quadrado. Ou isso ou cada vez mais crianças mortas nos braços dos pais em nossa timeline? Talvez, agora, só depois da Terceira Guerra. Fica a dica desde já.
De outra forma, reitero o que venho repisando nos últimos anos: qual seria a solução quanto aos que pensam de outra forma? Paredão? O Nakba palestino proposto por Avi Dichter? Para se evitar um novo holocausto, seria válido lançar mão de um novo holocausto? Repetição traumática da violência? Para além disso: é justo que todos paguem pelos crimes cometidos por uns poucos? A solução para o problema das milícias/narcotráfico seria bombardear os morros cariocas, fazer o Redentor sumir do mapa? A solução para os crimes (não só de ódio) na internet seria a vigilância/censura de todos os usuários? Qual é a régua na hora de medir o próprio calo?
Dito o quê: voltando a falar um pouco mais de mim, ou melhor, do capítulo 589 de um livro intitulado “Das cousas que só acontecem com Caquisraque”, não levou muito para o que eu bem esperava acontecesse: Bitcoin associado ao Hamas (aka terrorismo), perseguição (metafórica ou literal, a critério do leitor) a árabes em território nacional (líbano-brasileiros, em particular). Quis o destino que, a cinco horas do ataque, às oito e meia da noite do seis de outubro, no Brasil, eu desse o primeiro passo rumo à solicitação da minha própria dupla-cidadania: busquei informações a respeito no Whatsapp. Fui atendido dali a menos de uma hora, por volta das nove e vinte. Numa noite de sexta-feira. Atendido pelo mais que solícito Georges, nome também do meu tio, meu primo, meu tio-avô, meu primo de segundo grau e outro de terceiro (os três últimos ainda no Líbano). Acordei cedo com as notícias da rave.
Sinal? Aos montes, sinais?
Para além dos conceitos óbvios de biopolítica e necropoder, outra simples busca no Brave (can+a+state+commit+terrorism) me devolveu alguns artigos bem interessantes (e os escolhi bem ao léu, os três primeiros mesmo) como este de Peter Alan Sproat, professor das universidades de Reading, Sunderland e Newcastle, ou este de Steve Hewitt, professor da University of Birmingham, ou ainda este de Richard Jackson, professor da Aberystwyth University. Conclusão: estados podem, sim, cometer atos terroristas, caríssima Mariliz. E o fazem dia após dia, semana após semana. É só parar de ler jornal para saber.
E não indagar, por supuesto, o conceito de terrorismo (quiçá de semita) ao Ministro Alexandre de Moraes – nem a Lula.
A menos que se queira rir um pouco em meio a tanta desgraça.
Não tivesse sido vítima de antissemitismo (+terrorismo), a poeta palestina Heba Kamal talvez pudesse ajudar a responder.