Uma edição direto do túmulo 💀
Halloween, mudanças, e as pequenas mortes que sofremos todos os dias.
Edição 23
Nota do artista
Véspera de halloween e aqui estou eu para falar de morte e mudanças, nada mais propício já que se tem uma coisa que aconteceu em nossa cultura de alguns anos para cá, foi a força com que essa celebração foi sendo inserida nela.
Uma comemoração um tanto nichada. Talvez só aconteça na internet, escolas de inglês e nas baladas mais alternativas? Talvez. Mas agora, quem curte uma festa à fantasia, tem a desculpa de se fantasiar pelo menos duas vezes ao ano, no carnaval e também nas festas de halloween espalhadas pelo país.
E é interessante pensar que há alguns anos só ficávamos sabendo dessa festa através dos filmes da Sessão da Tarde, que conseguiam me deixar morrendo de inveja por não ter como me vestir de fantasma, pedir doces na porta dos vizinhos e viver “altas aventuras” (leia com a voz do locutor da sessão da tarde).
Mudança o nome disso, né? Empolga alguns, assusta outros. Será que o halloween está “matando” nossa cultura? Não sou tão pessimista. É só mais uma forma da gente se divertir e procurar encontrar leveza em algo que pesa tanto sobre nós, a morte.
E nos pesa tanto a morte física, que espera a todos no fim dessa jornada, quanto aquela que sofremos todos os dias e nem percebemos, aquela que faz a gente um dia acordar se sentindo outra pessoa, olhar uma foto antiga nossa e se perguntar quem é aquele ser, porque a gente já não se reconhece mais nele.
Até porque entre monstros que rastejam na escuridão, vozes faladas ao ouvido durante o sono, e puxadas de calcanhares às três da manhã, nada parece me apavorar mais do que a força com que as mudanças entram na vida da gente.
Mudanças essas que geralmente acompanham uma perda e nos exige coragem e muita consciência, para abraçar o monstro que a gente achava que vivia dentro da escuridão. E sabe o que é mais interessante? O monstro, às vezes, somos nós mesmos.
“É preciso estar atento e forte,
Não temos tempo de temer a morte.”Divino Maravilhoso (Autoria de Gilberto Gil e Caetano Veloso)
Crônica Ilustrada
A morte de todo dia
Lembro que um dia, quando adolescente, compartilhei com uma amiga o medo que eu tinha de deixar de gostar das coisas que eu gostava. Medo de parar de ouvir minhas músicas favoritas, de dançar, de me divertir, tinha medo de me tornar os adultos que eu conhecia.
Minha amiga, falou que se eu mudasse, eu iria estar feliz com a mudança, ia continuar sendo eu, só que diferente. Ela não estava errada, mas eu ainda segui com esse medo durante um bom tempo. O medo de deixar aquela versão que eu era morrer.
Não sabia eu, que o Walter daquela época iria morrer tão rápido que eu eu mal ia perceber ele indo embora. E depois daquela fase, muitas outras viriam, muitas outras versões minhas. E eu, inconscientemente, me apegaria a cada uma delas, como se fosse a definitiva.
Mas me parece que essa forma de reagir às mudanças não é a mais saudável. A sensação que tenho é a de que quanto mais resistimos, mais zumbificados ficamos. Um morto-vivo, tentando encontrar lugar em um mundo que já não lhe cabe mais.
E quando a gente não quer soltar a versão do passado, a gente acaba por sofrer mais, porque na tentativa de manter vivo o que já não deveria mais estar ali, deixamos de viver todas as coisas boas que vem junto com a mudança.
E nessa, eu comecei a construir uma visão niilista da vida, o que me fez por muito tempo não conseguir enxergar sentido na forma como o mundo funcionava. E ainda hoje, continuo sem entender a lógica por trás de muita coisa nesse sistema que nos rege.
Só que naquela época eu não conseguia encarar isso apenas com criticidade e sabedoria, a lente pela qual eu enxergava o mundo só me fazia enxergar o copo meio vazio. Mais algumas mortes ainda me seriam necessárias para que eu começasse a vê-lo meio cheio.
E eu cultivei uma certa apatia pela vida. E quando a gente se torna apático com a vida, a gente brinca com a morte o tempo todo. Depois de algum tempo, entraram no meu caminho situações que me forçaram a repensar a minha visão apática.
Algumas perdas foram necessárias para que isso acontecesse, algumas ilusões foram quebradas, aspectos do inconsciente foram trazidos à tona, muito choro, e por alguns momentos, a vontade de morrer. Não sabia eu, que aquele, já era um processo de morte.
Aquele tipo de morte que acontece todos os dias um pouquinho, até que um dia você levanta da cama e percebe que é outra pessoa, e a impressão que você tem é que foi de repente.
Quando olho para o passado, me pergunto quem é aquele garoto da adolescência, me pergunto quem é o jovem de três anos atrás, me pergunto quem era eu ontem. Já não me reconheço mais. Porque a transformação marca nossa existência o tempo todo.
Você lembra de quando você pensava diferente de como pensa hoje? Você lembra dos sonhos que você tinha, de como seus objetivos mudaram, as roupas que você usava, o tema das suas conversas, as suas amizades. E se tudo ocorreu como o fluxo natural da vida manda, você não é mais capaz de se reconhecer.
Me pergunto quantas mortes sofro por dia e nem percebo. Quantos pedaços da minha psique são deixados para trás. Corpos putrefatos, que já não servem mais para acoplar a nova consciência que diariamente se amplia.
E meu medo da mudança se dissolve sempre que observo todos os renascimentos que já sofri na vida; sempre que olho para a pessoa que eu era antes de deitar na cama a noite e a que eu sou, quando me levanto no dia seguinte.
Alguma coisa sempre é deixada para trás todas as noites. E às vezes eu nem sou capaz de perceber o evento causador dessa mudança, mas sei que todo dia ele está ali.
Uma frase que eu li em algum lugar, uma conversa com um amigo, uma matéria que eu vi na TV, uma música nova que me tocou em um lugar que eu não conhecia dentro de mim, ou uma música antiga, que tocou diferente em um lugar que eu já conhecia. Os motivos são vários, tantos quantos as possibilidades que temos de morrer fisicamente todos os dias.
Lá atrás, na adolescência, eu achava que aquela versão que eu era, já era o suficiente. Me achava pronto para a vida, aquela era a minha versão final e eu não deveria me livrar dela, nunca. O que eu não sabia, era que para continuar sendo quem realmente sou, ainda teria que morrer e renascer várias vezes. E não sem sofrimento. Porque se transformar, também é doloroso, implica em luto e exige que eu me vista de preto, mesmo que a morte, ainda seja em vida.
Desdobramentos
Conteúdos que nasceram a partir desta edição.
🎙️Um episódio sobre morte e renovação, mas também sobre medos. Compartilhei desde meu medo de deixar de ser quem eu era até o de fazer só o que esperavam de mim.
📹 E se você prefere ouvir podcasts lá pelo Youtube, também estou por lá:
O tom da edição
Dores, mudanças, mortes, o que a vida exige da gente é consciência para aceitarmos essas transformações sem tantos sofrimentos; para que assim como o Tim Bernardes canta em “Nascer, Viver, Morrer” possamos um dia também “nascer outra vez bem no meio da vida, de fato acordar e enxergar cada dia.” 🌱
Uma palavra e uma pergunta
✨ Renovação. O que é que você está insistindo em segurar por medo de evitar a mudança que a vida quer te trazer? Não tá na hora de deixar morrer?