Somos um País de Preguiçosos?
Existem culturas mais preguiçosas que outras? De onde vem a produtividade? Somos dependentes do Estado? Já ninguém quer trabalhar.
Preguiça cultural
A tentativa de ligar características nacionais, culturais e religiosas à má performance económica não é novidade. Desde que Max Weber escreveu “A Ética Protestante e o Espírito Capitalismo” que as se acreditam que existem características de certos povos que conduzem ao crescimento económico e outras que não.
Em Portugal este tipo de auto-xenofobia acaba por ser a consequência de uma narrativa que tomou conta do imaginário nacional desde a crise de 2011. Como Jeroen Dijsselbloem disse, os povos do Sul da Europa estavam na situação em que estavam porque gastaram o dinheiro em mulheres e álcool. Mas será que os portugueses são mais preguiçosos?
Este sentimento ressoa nas palavras de um consultor australiano que visitava fábricas em Portugal:
A minha impressão relativamente ao vosso trabalho barato desfez-se depois de vos ver a trabalhar. Não há dúvida que são mal pagos mas o retorno é igualmente baixo; ver os portugueses a trabalhar fez-me sentir que que são um povo satisfeito e tranquilo que não sentem a pressão do tempo. Quando falei com alguns gerentes disseram-me que é impossível mudar a cultura.
Na mesma linha, o missionário Sidney Gulick, que viveu em Portugal durante 25 anos, disse que “(…)os portugueses dão a impressão de serem preguiçosos e completamente indiferentes à passagem do tempo.” Só que nenhum destes senhores se referia a Portugal. Ambos falavam sobre o Japão do início do século XX.
O Japão não foi um caso isolado. A meio do século XIX, muitos ingleses e franceses tinham a mesma opinião sobre os alemães. Segundo John Russell, um escritor que viajou pela Alemanha em 1820, os alemães eram um povo que se arrastava, contentava-se com pouco e não era particularmente dotados de grande inteligência.
Hoje, estes estereótipos inverteram-se completamente. Ambos são vistos como povos extremamente diligentes e as mesmas razões que eram usadas para justificar a preguiça são hoje usadas para justificar o trabalho com afinco (cultura samurai no Japão por exemplo).
De onde vem a produtividade?
Quando as pessoas falam de produtividade estão a falar de uma de duas coisas: produtividade económica e produtividade pessoal. Suspeito que a produtividade pessoal é o que a maior parte das pessoas tem em mente quando fala sobre o tema. A imagem do português “típico” que chega tarde, prolonga o almoço e se vai embora às 18:00 em ponto.
Esse tipo de produtividade é pouco importante, mas mesmo que fosse, os dados mostram que os portugueses trabalham, em média mais horas do que todos os países da Europa Ocidental. Sim, mais do que os alemães, franceses e espanhóis.
Mas a produtividade económica, a capacidade do país usar os seus fatores de produção como um todo (terra, trabalho e capital) para maximizar a produção, é mais importante. Esta produtividade depende de uma infinidade de fatores, como o capital humano (educação), o capital social, a tecnologia, o tipo de investimento que se faz, etc.
Por mais produtivo que o trabalhador seja a nível individual, se os outros fatores não estão alinhados, a produtividade vai ser baixa. Um português médio trabalha menos do que um chinês médio, e ainda assim é muito mais produtivo. No gráfico podemos ver precisamente isso, quanto maior a produtividade económica, menor a necessidade de produtividade pessoal.
Podemos também pensar nos emigrantes portugueses. Quando um português sai de Portugal para o estrangeiro e começa a ganhar o dobro, tornou-se magicamente duas vezes mais produtivo do que era em Portugal? Não. Os outros fatores permitem que o fator trabalho tenha mais impacto do que tinha cá.
Somos um país de dependentes do Estado
Outra faceta deste discurso é a dependência que os portugueses têm do Estado. Segundo reza a lenda, esta dependência torna-nos dóceis e incapazes de votar noutro partido que não o PS. Mais uma vez, felizmente existem dados com os quais podemos comprovar estas alegações. Portugal é o quinto país da UE com menos funcionários públicos.
Ainda assim, estamos perto da média da UE, provavelmente por causa dos números da Alemanha e Itália (1ª e 3ª maior população) serem tão baixos. Por isso em termos de emprego não se pode dizer que os portugueses sejam mais dependentes do Estado do que a média da UE e até podemos dizer que estamos bastante abaixo da mediana.
Apesar disto somos o país da Europa Ocidental que mais gasta com a função pública. Cerca de 22% de toda a despesa pública é para pagar salários, significativamente acima da média da UE. Ainda assim, este valor caiu significativamente desde 2000, quando se encontrava nos 32%. Entre 2010 e 2019 esta percentagem praticamente não variou.
Por fim temos os subsídios. Segundo os dados da SS, o número de beneficiários do RSI caiu 50% na última década para o valor mais baixo de sempre. A despesa com o RSI também caiu significativamente desde o pico de 2010 e está agora nos 340 milhões de euros (0,1% do PIB).
Isto significa que o beneficiário médio recebe 1320€/ano ou 110€/mês, dificilmente uma quantia que permita uma dependência significativa. Mesmo se juntarmos todos os subsídios vemos que virtualmente não aumentaram durante uma década. Se excluirmos os períodos de crise, os subsídios quase não aumentam há 15 anos.
Isto representa menos de 5% do PIB em subsídios. É difícil encontrar dados detalhados de outros países que não incluam as pensões, que não é um subsídio, mas uma espécie de conta-poupança.
Ninguém quer trabalhar
Outra narrativa que se ouve com frequência é que ninguém quer trabalhar. Esta narrativa não é especifica a Portugal e está um pouco espalhada por todo o lado. Nos últimos tempos têm circulado uns tweets sobre a tendência “recente” dos mais jovens não quererem trabalhar.
Podemos olhar para os dados da população ativa em comparação com a população em idade ativa. O objetivo deste dado é perceber qual a percentagem de pessoas que podem trabalhar que trabalham ou procuram emprego. Atualmente, este número situa-se nos 78,1% e tem crescido desde a última década, muito perto de máximos históricos.
Só entre 2006-2008 é que este número foi superior ao que é hoje. Ou seja, há quase quinze anos que não há tanta gente a trabalhar e à procura de trabalho. Isto é mais importante para mim do que a noção de “querer” trabalhar. O querer é subjetivo. A quantidade de pessoas a trabalhar e à procura de trabalho são um facto.
Outro fator importante, mas raramente mencionado pelas pessoas que olham para os portugueses como inerentemente preguiçosos é o papel dos salários. Como podemos ver no gráfico abaixo, em 2004 cerca de 66% do PIB português era pago em salários. Desde então, esse valor tem caído consistentemente, atingindo os 55% em 2019.
Entre os países da Europa Ocidental mais EUA, Portugal teve a maior queda. Em 2004 éramos o país da Europa Ocidental e EUA com a maior percentagem, enquanto que em 2019 éramos o pior. Ou seja, entre 2004 e 2019 o PIB português cresceu $71,28 MM, mas os salários só cresceram $11,78 MM.
Falo nos salários porque é difícil dissociar o trabalho da sua recompensa. Existe uma componente da galinha e do ovo. Os aumentos são uma recompensa ou um incentivo? Mas é difícil acreditar que a melhoria da educação da população portuguesa se traduza numa pioria tão significativa da produtividade do trabalho que justifique a captura de apenas 16% do crescimento do PIB desde 2004.
Conclusão
Existe gente preguiçosa em todo o lado. Portugal não é especial nesse aspeto. Em tempos, países como a Alemanha, Japão, China e Coreia eram vistos exatamente da mesma forma que nós nos vemos a nós próprios hoje. No entanto, o facto de sermos pouco produtivos economicamente realça os casos de fraca produtividade individual.
Existem pessoas preguiçosas em todo o lado, mas esse tipo de produtividade não é o fator determinante para o crescimento económico. A produtividade económico é inversamente relacionada com a produtividade individual. Quanto melhor a nossa educação, chefia e ferramentas, menor a necessidade de passar 8 horas em produtividade contínua.
Portugal é um país normal para o nível de desenvolvimento em que se encontra. Tendo em conta o nível de educação da população portuguesa (de longe o país menos educado da UE), podemos dizer que é um pequeno milagre económico que tenhamos o nível de vida que temos. Mas isso fica para outro artigo.
Recomendações
Entrevista de Oriana Fallaci a Álvaro Cunhal – jornal O Caso da Republica, 27-06-1975, Curiosidades de Imprensa e Afins - Uma bela entrevista que põe a nu as crenças do líder histórico do PCP.
China Has an Extraordinary Covid-19 Dilemma, NYT - Depois do ressurgimento da Covid-19 na China que levaram aos protestos, este artigo argumenta que a liderança do país não tinha muitas alternativas à maneira como geriu a crise sanitária.